Permeado por certa visão de uma humanidade indigna e traiçoeira – desprezada
até mesmo pelos deuses –, o poema cria imagens escatológicas sobre o que ocorre
no trânsito estridente e fumarento de um ano a outro, entre bebedeiras, falsos
votos e muito sexo.
É o tempo a correr voraz, escancarando a sua boca para deglutir, mais
cedo ou mais tarde, “as almas de isopor”, nós que, como ovelhas, balindo em “igrejas,
boates e macumbas”, costumamos lançar ao mar, durante as festas de réveillon, “o
tributo florido de nossa gratidão”.
J.A.R. – H.C.
Lêdo Ivo
(1924-2012)
Feliz Ano Novo
Mais um ano termina em
estridência e fumaça.
A invejosa boca do
tempo se escancara
para engolir as almas
de isopor.
Os dias são iguais. E
para separá-los
– como quem afasta
alguns pelos entre lábios
as valvas fulvas se
contraem
sob os lençóis da
Noite.
Tudo é passagem para
o som e a forma
mas não se ouve a
trompa que ressoa
buscando alguém na
Ilha do Tesouro.
A espada pende no
vazio do mundo e chama
o estojo. E os
suspiros vagam
nos brejos que
resumem o diálogo
entre o pênis e a
vagina.
Feliz Ano Novo! diz o
meu irmão hipócrita
e vomita o que comeu
e bebeu o ano inteiro.
Nas igrejas, boates e
macumbas
balimos e bailamos,
as ovelhas
que os filtros da
redenção embebedaram.
E lançamos ao mar o
tributo florido
de nossa gratidão. E
os deuses nos desprezam.
Em: “Os Emblemas do Tempo”
Feliz Ano Novo
(Ary Mari: pintor
paulistano)
Referência:
IVO, Lêdo. Feliz ano novo. In:
__________. Finisterra: poesia de
Lêdo Ivo. Rio de Janeiro, GB: José Olympio, 1972. p. 76.
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