Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Ferreira Gullar - Boato

Em meio à ditadura que grassou no país durante os anos 60 e 70, Gullar direciona as suas críticas a um modo de se expressar a poesia com impassibilidade, sem recurso ao jorro de sentimentos, buscando a palavra perfeita, fazendo-a brilhar sobranceira como um diadema.

Diz ele que não se pode ser neutro se o que nos circunda é capaz de nos fazer infelizes – afinal, a política opressiva nos confrange o espírito e a vontade. Seria exatamente por isso, pela ausência de alegria, que há outras tantas razões para se recorrer à poesia – que “não muda (logo) o mundo”, é verdade, embora dê vazão ao turbilhão a nos inflamar a alma.

J.A.R. – H.C.

Ferreira Gullar
(1930-2016)

Boato

Espalharam por aí que o poema
é uma máquina
ou um diadema
que o poema
repele tudo que nos fale à pele
e mesmo a pele
de Hiroxima
que o poema só aceita
a palavra perfeita
ou rarefeita
ou quando muito aceita a palavra neutra
pois quem faz o poema é um poeta
e quem lê o poema, um hermeneuta.

Mas como, gente,
se estamos em janeiro de 1967
e é de tarde
e alguns fios brancos já me surgem no pentelho?
Como ser neutro se acabou de chover e a terra cheira
e o asfalto cheira
e as árvores estão lavadas com suas folhas
e seus galhos
existindo?
Como ser neutro, fazer
um poema neutro
se há uma ditadura no país
e eu estou infeliz?

Ora eu sei muito bem que a poesia
não muda (logo) o mundo.
Mas é por isso mesmo que se faz poesia:
porque falta alegria.
E quando há alegria
se quer mais alegria!

Em: “Dentro da noite veloz” (1962-1975)

Beleza da Natureza
(Steve Hanks: pintor norte-americano)

Referência:

GULLAR, Ferreira. Boato. In: __________. Toda poesia: 1950-1980. São Paulo, SP: Círculo do Livro, [1981]. p. 253-254.

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