Em meio à ditadura que grassou no país durante os anos 60 e 70, Gullar
direciona as suas críticas a um modo de se expressar a poesia com
impassibilidade, sem recurso ao jorro de sentimentos, buscando a palavra
perfeita, fazendo-a brilhar sobranceira como um diadema.
Diz ele que não se pode ser neutro se o que nos circunda é capaz de nos
fazer infelizes – afinal, a política opressiva nos confrange o espírito e a
vontade. Seria exatamente por isso, pela ausência de alegria, que há outras
tantas razões para se recorrer à poesia – que “não muda (logo) o mundo”, é
verdade, embora dê vazão ao turbilhão a nos inflamar a alma.
J.A.R. – H.C.
Ferreira Gullar
(1930-2016)
Boato
Espalharam por aí que
o poema
é uma máquina
ou um diadema
que o poema
repele tudo que nos
fale à pele
e mesmo a pele
de Hiroxima
que o poema só aceita
a palavra perfeita
ou rarefeita
ou quando muito
aceita a palavra neutra
pois quem faz o poema
é um poeta
e quem lê o poema, um
hermeneuta.
Mas como, gente,
se estamos em janeiro
de 1967
e é de tarde
e alguns fios brancos
já me surgem no pentelho?
Como ser neutro se
acabou de chover e a terra cheira
e o asfalto cheira
e as árvores estão
lavadas com suas folhas
e seus galhos
existindo?
Como ser neutro,
fazer
um poema neutro
se há uma ditadura no
país
e eu estou infeliz?
Ora eu sei muito bem
que a poesia
não muda (logo) o
mundo.
Mas é por isso mesmo
que se faz poesia:
porque falta alegria.
E quando há alegria
se quer mais alegria!
Em: “Dentro da noite veloz” (1962-1975)
Beleza da Natureza
(Steve Hanks: pintor
norte-americano)
Referência:
GULLAR, Ferreira. Boato. In:
__________. Toda poesia: 1950-1980.
São Paulo, SP: Círculo do Livro, [1981]. p. 253-254.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário