Se Drummond faz poesias de seu “Sentimento do Mundo” (1940), Mendes
Campos atém-se aos sentimentos que o tempo é capaz de lhe projetar no espírito –
o tempo, “esse grande escultor”, como epitomiza a escritora belgo-francesa Marguerite
Yourcenar – que em grande estilo o invoca nas memórias ficcionais do imperador
Adriano.
Não há quem vença a batalha contra o transcurso do tempo: da infância à
velhice, mesmo que abraçados às grandes obras – as literárias em especial –, nossas
faces deixam-se rabiscar por linhas indeléveis bosquejadas pelo suceder dos
anos, como rios que firmam sulcos que vão dar em grandes desfiladeiros,
difíceis de acobertar!
J.A.R. – H.C.
Paulo Mendes Campos
(1922-1991)
Sentimento do tempo
Os sapatos
envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo
aos mesmos descampados
E as borboletas
pousavam nos dedos dos meus pés.
As coisas estavam
mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras
portas, muitas portas.
Na terra, três ossos
repousavam
Mas há imagens que
não podia explicar; me ultrapassavam.
As lágrimas correndo
podiam incomodar
Mas ninguém sabe
dizer por que deve passar
Como um afogado entre
as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer
por que o eco embrulha a voz
Quando somos crianças
e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes
minha fotografia
Mas meus pais não
souberam impedir
Que o sorriso se
mudasse em zombaria
E um coração ardente
em coisa fria.
Sempre foi assim:
vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal
de um muro.
Costumo ver nos
guindastes do porto
O esqueleto funesto
de outro mundo morto
Mas não sei ver
coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a
cruz do assassinado
Mas quando voltei,
como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um
livro e nunca mais tive descanso.
Meus pássaros caíam
sem sentidos.
No olhar do gato
passavam muitas horas
Mas não entendia o
tempo àquele tempo como agora.
Não sabia que o tempo
cava na face
Um caminho escuro,
onde a formiga passe
Lutando com a folha.
O tempo é meu
disfarce.
Através do Tempo
(Lohmüller Gyuri:
pintor romeno)
Referência:
CAMPOS, Paulo Mendes. Sentimento do
tempo. In: __________. Poemas. Rio
de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira,
1984. p. 88.
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