Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Paulo Mendes Campos - Sentimento do tempo

Se Drummond faz poesias de seu “Sentimento do Mundo” (1940), Mendes Campos atém-se aos sentimentos que o tempo é capaz de lhe projetar no espírito – o tempo, “esse grande escultor”, como epitomiza a escritora belgo-francesa Marguerite Yourcenar – que em grande estilo o invoca nas memórias ficcionais do imperador Adriano.

Não há quem vença a batalha contra o transcurso do tempo: da infância à velhice, mesmo que abraçados às grandes obras – as literárias em especial –, nossas faces deixam-se rabiscar por linhas indeléveis bosquejadas pelo suceder dos anos, como rios que firmam sulcos que vão dar em grandes desfiladeiros, difíceis de acobertar!

J.A.R. – H.C.

Paulo Mendes Campos
(1922-1991)

Sentimento do tempo

Os sapatos envelheceram depois de usados
Mas fui por mim mesmo aos mesmos descampados
E as borboletas pousavam nos dedos dos meus pés.
As coisas estavam mortas, muito mortas,
Mas a vida tem outras portas, muitas portas.
Na terra, três ossos repousavam
Mas há imagens que não podia explicar; me ultrapassavam.
As lágrimas correndo podiam incomodar
Mas ninguém sabe dizer por que deve passar
Como um afogado entre as correntes do mar.
Ninguém sabe dizer por que o eco embrulha a voz
Quando somos crianças e ele corre atrás de nós.
Fizeram muitas vezes minha fotografia
Mas meus pais não souberam impedir
Que o sorriso se mudasse em zombaria
E um coração ardente em coisa fria.
Sempre foi assim: vejo um quarto escuro
Onde só existe a cal de um muro.
Costumo ver nos guindastes do porto
O esqueleto funesto de outro mundo morto
Mas não sei ver coisas mais simples como a água.
Fugi e encontrei a cruz do assassinado
Mas quando voltei, como se não houvesse voltado,
Comecei a ler um livro e nunca mais tive descanso.
Meus pássaros caíam sem sentidos.
No olhar do gato passavam muitas horas
Mas não entendia o tempo àquele tempo como agora.
Não sabia que o tempo cava na face
Um caminho escuro, onde a formiga passe
Lutando com a folha.
O tempo é meu disfarce.

Através do Tempo
(Lohmüller Gyuri: pintor romeno)

Referência:

CAMPOS, Paulo Mendes. Sentimento do tempo. In: __________. Poemas. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1984. p. 88.

Nenhum comentário:

Postar um comentário