Afonso Henriques, neto do famoso poeta simbolista Alphonsus de
Guimaraens, busca definir o que seja um poeta: um cultivador de “neurose
própria”, que daria um belo trabalho de análise e de interpretação para os
adeptos da psicanálise! (rs)
Porta-se o vate como um interrogador de tudo o que se passa ao redor,
conferindo perspectiva ‘sui generis’ a fatos, sentimentos e paisagens, muitas
vezes lançando mão de forte intuição, pois, está claro, boa parte do que se
cria em matéria de arte não passa pelo crivo da compreensão, ou melhor, da pura
racionalidade.
J.A.R. – H.C.
Afonso Henriques de Guimarães Neto
(n. 1944)
Poema
Ser poeta é cultivar
uma neurose própria,
mesmo se muita lua
exista e haja luz,
mesmo se todos os
lábios se esgarcem
à procura da graça
que não houve.
Ser poeta é fugir
repentinamente
por uma porta
qualquer
e perguntar ao tempo
neutro:
“é verdade que toda
essa paisagem existe?”
“mas por quê?”
“por que logo tão
amarela?”
Ser poeta é
ultrapassar as últimas fronteiras
e duvidar muito em
silêncio:
“serão essas as
estâncias derradeiras?”
Ser poeta é sentir-se
subitamente burro,
por inteiro incapaz,
por todos os lados
vazio
o universo em cinza e
vento
atravessado em
sombras na garganta.
Ser poeta é ser mais
profundo que os rios,
mais compacto que as
montanhas,
mais verdadeiro que
toda a linguagem,
é cultivar um
incêndio muito íntimo.
E não compreender
coisa alguma disso...
O Poema
(Mary Evelina Kindon:
pintora inglesa)
Referência:
GUIMARÃES NETO, Afonso Henriques de. Poema. In: AYALA, Walmir (Ed.). Poetas novos do Brasil. Rio de Janeiro,
GB: Instituto Nacional do Livro, 1969. p. 25-26. (Coleção “Cultura Brasileira:
Literatura - Antologias”; n. 1)
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