Um artigo excepcionalmente bem escrito pelo jornalista Mino Carta, da
revista CartaCapital, sobre os últimos acontecimentos políticos aqui ocorridos. As passagens grafadas em vermelhos são de minha autoria, para despertar a atenção dos
leitores à forma como Carta a tudo contempla.
Estão implícitas as referências ao apoio que a mídia (Globo + Veja +
Folha de São Paulo + Estadão etc.), o FHC (“pé na conzinha”), o Gilmar Mendes (“STF
altamente politizado”) e outras figuras prestaram a essa sandice, verdadeiro
estupro à democracia, pois alguns 500 atiraram ao lixo da história os votos de
54 milhões. Dizer o quê?!
J.A.R. – H.C.
Mino Carta
(n. 1933)
A INTELIGÊNCIA IMPOTENTE
O IMPEACHMENT DE DILMA ROUSSEFF LEVA A UMA
CONCLUSÃO INEVITÁVEL: UM
PAÍS QUE ADMITE UM GOLPE DESTA NATUREZA CARECE DE SAÚDE MENTAL
Quem, ainda dotado de
um resquício de espírito crítico embora dado à autoflagelação, se dispôs a
assistir às sessões de segunda 29 e terça 30, derradeiros quadros do ato da
farsa trágica intitulado Impeachment,
o segundo, provavelmente, terá de cair em depressão profunda. O conjunto da
obra imposto ao País, desde a eclosão do escândalo da Petrobras até os dias de
hoje ao longo de um enredo tortuoso e apavorante na sua insensatez, levará
aquele cidadão, peculiar em relação à maioria, a se render à evidência: o maior problema do
Brasil, muito antes do desequilíbrio social e da corrupção, é o quociente de
inteligência baixo, baixíssimo. Um país que se permite um golpe desta natureza
carece de saúde mental.
No palco o espetáculo
engloba a plateia por inteiro, mesmo que muitos se suponham meros espectadores,
e representa um povo primitivo, da cúspide da pirâmide à base. Cordial não é
certamente, como sinônimo de alegre, bonachão, malemolente. E a pirâmide, a bem
da verdade, é mais um estranhíssimo contubérnio com um cone, ponta de agulha em
vez da cúspide e uma base imensa e compacta. Um Frankenstein geométrico e
social.
A resignação na base
explica-se ao evocar três séculos e meio de escravidão, que deixaram a marca da
chibata no lombo de dezenas de milhões de cidadãos privados da consciência da
cidadania e geraram um preconceito feroz, conquanto hipocritamente negado até por
quem, a despeito do “pé na cozinha”, agregou-se, ao enricar, a uma aristocracia
de fancaria.
A resignação do povão
merece pena em lugar de tolas interpretações. Ao cidadão ainda em condições de
exercer o espírito crítico há de doer entre o fígado e a alma a forma pela qual
a prepotência vinga e o cenário se aquieta, como se a farsa trágica em andamento
fosse obra dos fados, gregos, obviamente.
Está claro, de todo
modo, que o golpe de 2016 é infinitamente mais grave do que o de 1964. Este provocou
reações fortes, criou uma resistência e até uma luta armada, além do anseio de
democracia autêntica, como jamais se dera até então, passível de ser atingida
tão logo se fossem os ditadores. Se falo por mim, a ditadura me levou ao
entendimento da real serventia do jornalismo e me reteve no País graças a esse
entendimento, destinado a oferecer motivação a um cético convicto ao excitar
seu otimismo na ação.
O golpe destes dias
devolve o Brasil aos tempos mais remotos e demole inexoravelmente todos os
avanços ocorridos depois de 1985. Não foram demolidas a casa-grande e a
senzala, mas avanços se deram, e o maior deles está na eleição de Luiz Inácio
Lula da Silva em 2002. Foi divisor de águas na história brasileira tornar um
ex-metalúrgico o primeiro mandatário. Aquele momento aparentou ser a prova
provada da habilitação do Brasil à prática da democracia.
Lula teve méritos
inegáveis, já apontados largamente por CartaCapital
e reconhecidos mundialmente. Hoje o vemos perseguido por razões inconsistentes
e até ridículas, com a pronta colaboração de uma polícia que se presta ao
serviço outrora entregue pela casa-grande a capatazes e jagunços, e o
beneplácito de uma Justiça de mão única. Imaginar que a farsa trágica se
encerra com o impeachment é ilusão ou
parvoíce. Não faltam escribas para outro ato, o terceiro, grand finale, e nele Lula é excluído à força da disputa presidencial
de 2018.
Cabe uma pergunta a
quem ainda trava diálogos com seus botões: se houver eleições presidenciais em
2018, de que feitio serão? O golpe, ao rasgar a Constituição, manda às favas o
presidencialismo republicano para substituí-lo pela lei do mais forte. Que
surgirá dos escombros? E os eleitores, acreditarão na validade do pleito se a
pesquisa de opinião e a prepotência de uma gangue sinistra que age a mando da
casa-grande anulam o voto popular? Mais: se o candidato favorito é excluído
ao sabor de falsas acusações?
Botões atentos
responderão que a prisão de Lula é perfeitamente possível, se não provável, já
que a quadrilha manda, a mesma que precipita o impeachment de Dilma Rousseff sem prova de crime de
responsabilidade. A presidenta impedida defendeu-se em plenário cornos
argumentos justos e irretocáveis como se dirigisse a uma Câmara Alta digna da
contemporaneidade do mundo e da confiança dos eleitores, e horas e horas a fio
os defendeu com empenho e elegância. Aos meus botões pergunto, contudo, se não
teria sido melhor dirigir-se ao povo brasileiro para ler, pacatamente, mas sem
retoques, a ficha criminal daqueles que se arvoraram a julgá-la.
Sempre tive admiração
pela figura de Sansão, ele disse no lance final da sua aventura bíblica, “morra,
Sansão, com todos os filisteus”, e pontualmente executou a ameaça. Dilma não
dispõe da musculatura de Sansão, tampouco da mentalidade do “perdido, perdido e
meio”, apesar da coragem que soube mostrar em situações diversas. Não lhe
faltou energia para aguentar dois dias de uma pantomima celebrada para tornar a
decisão tomada faz meses, e prolongada conforme um ritual ibérico, tão inútil
quão humilhante.
Dilma teve de
suportar situações deploráveis, recheadas pela retórica mais hipócrita, pelas
lacunas culturais dos interrogadores, frequentemente pela lida difícil com o
vernáculo, e pela aterradora atuação do presidente do STF, Ricardo Lewandowski,
avalista do desastre. [...] Pergunta Aécio Neves algo assim como “a
senhora não se sente responsável pela alta do desemprego?” Dilma responde com
uma aula sobre as origens e os desenvolvimentos da crise econômica mundial em
vez de desancar o torquemadinha mineiro. Será que querem puni-la por causa do
desemprego?
De todos, mais
deplorável e revelador, o víscido desempenho do senador Cristovam Buarque. Sim,
ele reconhece, Dilma é uma mulher honesta e lhe merece muita simpatia, mas as “pedaladas”
são criminosas e ele tem de se render às suas responsabilidades de cidadão e de
parlamentar para cumprir a missão de condená-la. Abjeta tentativa de
se mostrar como varão de Plutarco, enquanto participa de um crime, este sim
irrefutável. Honra ao mérito, em contrapartida, aos digníssimos senadores
Roberto Requião e Lindbergh Farias.
Buarque prefere apostar
no QI baixo, ao rés do chão, e nesta confiança não se diferencia dos demais
golpistas. Parlamentares, juízes, promotores, policiais, empresários rentistas,
barões midiáticos e seus sabujos. Muitos, entre estes, também não primam pelo
brilho da mente. Umas dúvidas me assaltam em relação ao juiz Sérgio Moro. Será
que acredita no que diz ao afirmar a semelhança entre a Lava Jato e a Mani Pulite?
Com inefável candura,
continua a afirmar que os vazamentos para a mídia foram uma arma eficaz da
operação italiana. Saberá ele que a mídia peninsular está nas antípodas da
nativa, no sentido de que se abre em leque em sintonia com ideologias e
tendências políticas a representar todos os estratos da nação?
Como sabemos, a mídia
nativa é do pensamento único, na linha do vento a soprar das alturas da
casa-grande, mesmo porque seus patrões são inquilinos cativos da mansão
senhorial. Moro já percebeu isso tudo e sabe que a Suprema Corte da Itália
costuma agir como sentinela da lei e da sua aplicação, bem ao contrário do
nosso altamente politizado STF? Mani Pulite
não pretendeu alvejar um partido e os seus líderes, e sim um sistema corrupto.
Da investida escapou tranquilamente o Partido Comunista de conduta
irrepreensível, em um país onde a Constituição permanece a mesma desde 1948.
A respeito do QI
baixo de inúmeras personagens da farsa trágica, não tenho dúvida, bem como de
uma classe A e B1 (adoto as terminologias correntes) nunca alcançada pelas
lições do Iluminismo, estupidamente exibicionista, ignorante até a medula,
arrogante e vulgar. Não são melhores os seus aspirantes, os brasileiros
sequiosos de chegaria, e mesmo aqueles que estão longe disso e se antecipam ao
comungar com idênticas, parvas pretensões. Com este gênero de brasileiros, um diálogo
baseado na razão e na lógica é simplesmente impossível. Sabem tudo de antemão,
nutridos pela torpe narrativa midiática, ou de ouvidos postos no que sai da
boca dos graúdos.
Inúteis esperanças
foram as de quem pretendeu trafegar pela realpolitik
e, embora de esquerda e desenvolvimentista, tentou agradar aos senhores e fez
genuflexão ao deus mercado. Como se deu com apropria Dilma, ao chamar Joaquim
Levy para a Fazenda. Em sua defesa da presidenta afastada, dia 25 de agosto, o
professor Belluzzo não deixou de apontar o erro grave, e nem por isso passível
de punição pelo impeachment. Sem
contar que Joaquim Levy jamais será tido como inimigo dos golpistas. Aliás, quem imagina ser
possível um entendimento com a casa-grande comete um erro fatal: no Brasil, conciliação
só das elites.
Diálogo equilibrado
deste lado é também inviável, e buscá-lo exibe um QI frágil. No poder o PT
enredou-se nas suas próprias carências, entre elas a ausência de crenças
arraigadas por parte até de alguns de seus líderes, e portou-se como todas as
demais agremiações políticas, melhor, clubes recreativos. Muitos dos
comportamentos de uma esquerda tão distante das consignas iniciais revelam, a
seu modo, o QI baixo. Sem excluir os jovens revolucionários de tempos idos, tão
desnutridos de leituras e de ideias, radicais extremados em nome da moda
passageira.
Não tenho
conhecimento suficiente para dissertar a respeito do exato significado de
inteligência. Sei apenas que cada qual ao nascer recebe a sua horta de
neurônios, cujo tamanho depende de uma série de fatores, a começar pelo DNA.
Para dar frutos, a horta precisa ser cultivada, pelo estudo, pela leitura, pela
busca do conhecimento. Nem todos têm a chance de cumprir a tarefa.
No Brasil de um Estado
desinteressado da saúde mental e física do povo, certamente muito poucos. Não
há como apurar quantos gênios são desperdiçados em um país onde o povo é valor
descontável, quando é, de verdade, um tesouro inexplorado. E esta também, e
sobretudo, é prova de um quociente de inteligência baixo, baixíssimo. A
gritaria e os fogos ouvidos no encerramento do segundo ato da farsa trágica são
próprios da festa da pobreza de espírito.
Referência:
CARTA, Mino. A inteligência impotente.
In: CartaCapital. Edição especial do
impeachment; 7 set. 2016; ano XXII;
nº 917; p. 16-19. Disponível neste endereço.
Acesso em: 5 set. 2016.
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