Um dos maiores poetas sérvios do pós-guerra reflete longamente sobre as
vicissitudes do seu tempo, neste poema simultaneamente filosófico, mítico e
histórico, perpassado por referências à guerra que assolou o seu país natal.
Pávlovitch vislumbra possibilidades de continuidade do convívio humano,
mesmo a despeito das rupturas bélicas, porquanto, como afirma, cada família
espiritual contém um antídoto contra a sua aniquilação, de forma a se reestruturar
a ponte que conecta o passado ao futuro.
J.A.R. – H.C.
Miodrag Pávlovitch
(1928-2014)
Tudo vive
Parece que tudo passa
para que recomece
desde o princípio,
como se fosse novo, ou se observe
sem levar em conta
algo que já existiu
e tampouco aquilo que
virá, infindável.
Uma grande
destruição, como se tudo se apagasse atrás de nós
a história, as
lembranças, os valores existentes
e as imagens que nos
governavam.
Alguém nos
confidencia: rápido o passado se afasta de nós,
você vê como ele se
transmuda, depois põe-se além do horizonte
e talvez nem mais
exista, renuncia a tudo que é inútil,
se ainda recordações
você preserva.
Mas, se a história
passa
(ela própria é
narrativa sobre a transitoriedade), algo permanece:
de cada conceito
antigo uma ou outra raiz
e os rituais do culto
de outrora límpidos em nós,
o diálogo entre nós e
os filosofemas anteriores é possível.
No meio da charada
contemporânea emerge o algarismo original.
Nada se repete no
tempo, além dos velhos problemas,
e palavras que o
homem olvidou ao ser criado,
para redescobri-los
quando
acima dele trovejam
bobinas desenroladas de antigas ordens.
A meditação que
Descartes nos legou
sobre a mesa sempre
recomeça, e também o método
que vincula o
autodespertar do entendimento àquilo que se
pensava outrora.
Era o que desejava
Leibniz antes que a sabedoria alcançasse
o ponto crítico em
que o sofista reapareceu.
O artista concebe
assim seu ponto de partida,
quando se revolta ou
destrói; pisca um olho
e afirma: nada me
surpreende, nem a deusa de argila,
que o homem neolítico
portava durante a semeadura,
nem aquilo que o
criador refinado do templo da caverna e da
caça selvagem rabiscou
no castelo subterrâneo.
Toda a família
espiritual contém um antídoto
contra a aniquilação,
e a república espiritual está povoada
de uma espécie de
conhecedores de ervas medicinais e outros
opositores dos que
envenenam, e ela se defende
onde ninguém a ataca,
pois nem a enxerga nem a ouve,
defende-se dos que
acendem fogueiras e dos fanáticos do
novo jogo
que se encanta com a
explosão, assim como outrora
acontecia com o
delírio de brincar com o fogo e considerar
sagrado o sofrimento
do bode expiatório nas mãos do
carrasco coletivo.
Seremos capazes de
devolver ao espírito cada centelha,
se agora testemunharmos que “tudo vive”:
o passado dentro do
futuro, a sabedoria na loucura,
o conhecimento nas
trevas,
e que tudo aquilo que
na vida é rubro, vermelho-escuro,
branco raiado de
paixão, jamais se acinzente.
O Filósofo
(Nicaise de Keyser:
pintor belga)
Referência:
PÁVLOVITCH, Miodrag. све живи / Tudo vive. In: __________. Bosque da maldição. Seleção, introdução
e tradução de Aleksandar Jovanovié. Edição bilíngue. Brasília, DF: Editora da
UnB, 2003. Em cirílico: p. 38 e 40; em português: p. 39 e 41. (Coleção ‘Poetas
do Mundo’)
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