Na década de 80, o cantor e compositor Fagner musicou belos poemas de
alguns nomes da literatura, como, v.g., Fernando Pessoa, Florbela Espanca e
Ferreira Gullar – sendo da autoria deste último o poema que a seguir se
transcreve.
O poema, em sua temática, revela a inconstância do ser, que migrando de
um polo a outro, põe em questão a estrutura mesma da realidade. Pergunta-se
então no poema: será arte a habilidade de traduzir, de uma à outra ponta, as
manifestações duais que nos assolam? Ou de outra forma: converter em linguagem aquilo
que nos desassossega?
J.A.R. – H.C.
Ferreira Gullar
(n. 1930)
Traduzir-se
Uma parte de mim
é todo mundo;
outra parte é ninguém
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão;
outra parte
estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera;
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta;
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente;
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
Será arte?
Traduzir-se
Fagner (1981)
Referência:
GULLAR, Ferreira. Traduzir-se. In:
__________. Os melhores poemas de
Ferreira Gullar. 2. ed. São Paulo, SP: Global, 1985. p. 144-145. (‘Os Melhores Poemas’; v. 3)
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