Como afirma Drummond no poema da postagem anterior, há um momento de
tristeza em cada criador, quer seja ele o Eterno quer seja, v.g., o poeta, que,
com suas palavras, busca externar ao conhecimento de todos, aquilo que lhe vai
no interno, muitas vezes de difícil expressão por meio da linguagem.
Não fosse de tal modo, como interpretar a passagem do poema abaixo em
que Vinicius afirma a perquirir: “O que sou eu senão Ele, o Deus em sofrimento”?!
Afinal, para se fazer algo com beleza, ele próprio já afirmara alhures que é
preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um... samba, não!
J.A.R. – H.C.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
A Vida Vivida
Quem sou eu senão um
grande sonho obscuro em face do Sonho
Senão uma grande
angústia obscura em face da Angústia
Quem sou eu senão a
imponderável árvore dentro da noite imóvel
E cujas presas
remontam ao mais triste fundo da terra?
De que venho senão da
eterna caminhada de uma sombra
Que se destrói à
presença das fortes claridades
Mas em cujo rastro
indelével repousa a face do mistério
E cuja forma é
prodigiosa treva informe?
Que destino é o meu
senão o de assistir ao meu Destino
Rio que sou em busca
do mar que me apavora
Alma que sou clamando
o desfalecimento
Carne que sou no
âmago inútil da prece?
O que é a mulher em
mim senão o Túmulo
O branco marco da
minha rota peregrina
Aquela em cujos
braços vou caminhando para a morte
Mas em cujos braços
somente tenho vida?
O que é o meu Amor,
ai de mim! senão a luz impossível
Senão a estrela
parada num oceano de melancolia
O que me diz ele
senão que é vã toda a palavra
Que não repousa no
seio trágico do abismo?
O que é o meu Amor?
senão o meu desejo iluminado
O meu infinito desejo
de ser o que sou acima de mim mesmo
O meu eterno partir
da minha vontade enorme de ficar
Peregrino, peregrino
de um instante, peregrino de todos os instantes?
A quem respondo senão
a ecos, a soluços, a lamentos
De vozes que morrem
no fundo do meu prazer ou do meu tédio
A quem falo senão a
multidões de símbolos errantes
Cuja tragédia efêmera
nenhum espírito imagina?
Qual é o meu ideal
senão fazer do céu poderoso a Língua
Da nuvem a Palavra
imortal cheia de segredo
E do fundo do inferno
delirantemente proclamá-los
Em Poesia que se
derrame como sol ou como chuva?
O que é o meu ideal
senão o Supremo Impossível
Aquele que é, só ele,
o meu cuidado e o meu anelo
O que é ele em mim
senão o meu desejo de encontrá-lo
E o encontrando, o
meu medo de não o reconhecer?
O que sou eu senão Ele,
o Deus em sofrimento
O temor imperceptível
na voz portentosa do vento
O bater invisível de
um coração no descampado...
O que sou eu senão Eu
Mesmo em face de mim?
Rio de Janeiro (1938)
Triunfo de Galateia
(Andrea Casali:
pintor italiano)
Referência:
MORAES, Vinicius de. A vida vivida. In:
__________. Antologia poética. 14.
Reimpressão. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 1992. p. 53-54.
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