Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Cecília Meireles - Papéis

A poetisa relembra, nestes seus “Papéis”, os voos de imaginação experimentados, em especial, na infância, o modo intimista como já interpretava aqueles momentos, de uma vida que se iniciava e outras que se extinguiam para sempre.

Revela-se aí uma Cecília Meireles a abraçar o estilo confessional, ou melhor, de resgate da memória, em especial daqueles instantes que, inexplicavelmente, cada qual guarda fundo no coração. Em meio às suas ruminações, a poetisa se pergunta: “Mas por que sempre lembrar essas coisas longínquas?”.

J.A.R. – H.C.

Cecília Meireles
(1901-1964)

Papéis

I

Naquele tempo, o que eu mais desejava era uma árvore.
A mangueira.
E minha avó plantou a mangueira no jardim.
Cresceu devagar, com dificuldade.
Sofria de uma doença que a envolvia,
de vez em quando parecia afogada numa teia de aranha,
como se fosse morrer.

Afinal, atingiu a altura da janela do quarto.
Nesse ano, minha avó morreu.
E eu, sentada à beira da cama,
via-a aparecer na janela.

II

Muitas histórias melancólicas envolvem as crianças.
Às vezes, eu estava brincando com os meus bonecos,
mas estava pensando no bastidor da mamãe,
com um bordado interrompido,
e em coisas antigas, que estavam por ali,
e que tinham vindo de casas acabadas,
de pessoas acabadas,
de um mundo acabado.
Era a minha família.

III

Meu avô, que não conheci,
morreu debaixo do cajueiro,
de repente.
Ao lado do manacá plantado por suas mãos.
Logo que um manacá floresce,
vejo esse avô que não conheci.

Um avô jovem, belo, de olhos verdes,
e as lágrimas de minha avó abraçada ao seu peito.
Seu peito, ela recordava,
era branco, firme, polido – um marfim.

IV

Minha infância foi sobre um velho tapete oriental.
Nele aprendi a beleza das cores.
Nele sonhei com as raízes do azul e do encarnado.
E sempre me pareceu que o desenho era uma escrita:
que o tapete falava coisas,
– eu é que ainda o não podia entender.

V

Mas por que sempre lembrar essas coisas longínquas?
A verdade, porém, é que há uns dias inesquecíveis,
uns fatos inesquecíveis, dentro de nós.
Tudo o mais, que vivemos, gira em redor deles.
Toda uma vida se reduz, afinal, a umas poucas emoções,
por muitos anos que vivamos,
apesar de viagens, experiências, realizações, sonhos, saber...
Vivemos tudo – o humano e universal –
nuns pequenos instantes, obscuros e essenciais.

Todos os dias assim, de chuvinha fina,
Penso em velhas cenas da infância:
a tarde em que comia um pedaço de maçã
e conheci o arco-íris;
o livro em que estudava francês,
com uma gravura de crianças felizes, que riam para o ar:
La pluie;
a minha solidão com tesouras, cola e cartolina:
“Brinquedos para os dias de chuva...”

Tudo isso vem à minha memória, como visitantes inesperados.
Interrompo o que estou fazendo, tenho uma pena imensa de mim.
Depois, penso em velhos poemas chineses, curtos e leves.

Sou como quem mira uma antiga coleção de cartões-postais.

Setembro, 1955

Em: “Dispersos” 

Adejo
(Bob Byerley: pintor norte-americano)

Referência:

MEIRELES, Cecília. Papéis. In: __________. Cecília de bolso: uma antologia poética. Organização e apresentação de Fabrício Carpinejar. Porto Alegre, RS: L&PM, 2014. p. 166-169. (Coleção ‘L&PM Pocket; v. 700)

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