A poetisa relembra, nestes seus “Papéis”, os voos de imaginação experimentados,
em especial, na infância, o modo intimista como já interpretava aqueles
momentos, de uma vida que se iniciava e outras que se extinguiam para sempre.
Revela-se aí uma Cecília Meireles a abraçar o estilo confessional, ou
melhor, de resgate da memória, em especial daqueles instantes que,
inexplicavelmente, cada qual guarda fundo no coração. Em meio às suas
ruminações, a poetisa se pergunta: “Mas por que sempre lembrar essas coisas
longínquas?”.
J.A.R. – H.C.
Cecília Meireles
(1901-1964)
Papéis
I
Naquele tempo, o que
eu mais desejava era uma árvore.
A mangueira.
E minha avó plantou a
mangueira no jardim.
Cresceu devagar, com
dificuldade.
Sofria de uma doença
que a envolvia,
de vez em quando
parecia afogada numa teia de aranha,
como se fosse morrer.
Afinal, atingiu a
altura da janela do quarto.
Nesse ano, minha avó
morreu.
E eu, sentada à beira
da cama,
via-a aparecer na
janela.
II
Muitas histórias
melancólicas envolvem as crianças.
Às vezes, eu estava
brincando com os meus bonecos,
mas estava pensando
no bastidor da mamãe,
com um bordado
interrompido,
e em coisas antigas,
que estavam por ali,
e que tinham vindo de
casas acabadas,
de pessoas acabadas,
de um mundo acabado.
Era a minha família.
III
Meu avô, que não
conheci,
morreu debaixo do
cajueiro,
de repente.
Ao lado do manacá
plantado por suas mãos.
Logo que um manacá
floresce,
vejo esse avô que não
conheci.
Um avô jovem, belo,
de olhos verdes,
e as lágrimas de
minha avó abraçada ao seu peito.
Seu peito, ela
recordava,
era branco, firme,
polido – um marfim.
IV
Minha infância foi
sobre um velho tapete oriental.
Nele aprendi a beleza
das cores.
Nele sonhei com as
raízes do azul e do encarnado.
E sempre me pareceu
que o desenho era uma escrita:
que o tapete falava
coisas,
– eu é que ainda o não podia entender.
V
Mas por que sempre
lembrar essas coisas longínquas?
A verdade, porém, é
que há uns dias inesquecíveis,
uns fatos
inesquecíveis, dentro de nós.
Tudo o mais, que
vivemos, gira em redor deles.
Toda uma vida se
reduz, afinal, a umas poucas emoções,
por muitos anos que
vivamos,
apesar de viagens,
experiências, realizações, sonhos, saber...
Vivemos tudo – o humano e universal –
nuns pequenos
instantes, obscuros e essenciais.
Todos os dias assim,
de chuvinha fina,
Penso em velhas cenas
da infância:
a tarde em que comia
um pedaço de maçã
e conheci o
arco-íris;
o livro em que
estudava francês,
com uma gravura de
crianças felizes, que riam para o ar:
La pluie;
a minha solidão com
tesouras, cola e cartolina:
“Brinquedos para os
dias de chuva...”
Tudo isso vem à minha
memória, como visitantes inesperados.
Interrompo o que
estou fazendo, tenho uma pena imensa de mim.
Depois, penso em
velhos poemas chineses, curtos e leves.
Sou como quem mira
uma antiga coleção de cartões-postais.
Setembro, 1955
Em: “Dispersos”
Adejo
(Bob Byerley: pintor
norte-americano)
Referência:
MEIRELES, Cecília. Papéis. In:
__________. Cecília de bolso: uma
antologia poética. Organização e apresentação de Fabrício Carpinejar. Porto
Alegre, RS: L&PM, 2014. p. 166-169. (Coleção ‘L&PM Pocket; v. 700)
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