Vamos a um passeio por alguns dos mais expressivos versos do poeta por
excelência – Fernando Pessoa: aqui aflora todo aquele poder de imaginação, de
expressividade, de disposição das palavras para que se tenha um efeito sempre
de excesso de sentimentos.
Ainda que Pessoa, neste poema, não se julgue poeta, tudo não passa de um
acerto de contas transversal. Afinal, diz ele que apenas vê o mundo. Mas não só
isso, obviamente: Pessoa tem o dom de transportar para a escala verbal muito
desse fardo que parece viver e morrer intocado no coração humano, sem que
saibamos ou mesmo possamos canalizá-lo para um discurso que faça sentido aos
nossos pares.
J.A.R. – H.C.
Fernando Pessoa
(1888-1935)
A Espantosa Realidade das Cousas
A espantosa realidade
das cousas
É a minha descoberta
de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar
a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me
basta.
Basta existir para se
ser completo.
Tenho escrito
bastantes poemas.
Hei de escrever
muitos mais, naturalmente.
Cada poema meu diz
isto,
E todos os meus
poemas são diferentes,
Porque cada cousa que
há é uma maneira de dizer isto.
Às vezes ponho-me a
olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar
se ela sente.
Não me perco a
chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por
ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela
não sente nada.
Gosto dela porque ela
não tem parentesco nenhum comigo.
Outras vezes oiço
passar o vento,
E acho que só para
ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.
Eu não sei o que é
que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto
deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem ideia de outras
pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem
pensamentos
Porque o digo como as
minhas palavras o dizem.
Uma vez chamaram-me
poeta materialista,
E eu admirei-me,
porque não julgava
Que se me pudesse
chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou
poeta: vejo.
Se o que escrevo tem
valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos
meus versos.
Tudo isso é
absolutamente independente da minha vontade.
(7-11-1915)
Criador de Realidade
(Svetoslav Stoyanov:
artista búlgaro)
Referência:
PESSOA, Fernando. A espantosa realidade
das cousas. In: __________. Obra poética. 8. ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar, 1981. p. 168-169. (Biblioteca
Luso-Brasileira)
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