Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Fernando Pessoa - A Espantosa Realidade das Cousas

Vamos a um passeio por alguns dos mais expressivos versos do poeta por excelência – Fernando Pessoa: aqui aflora todo aquele poder de imaginação, de expressividade, de disposição das palavras para que se tenha um efeito sempre de excesso de sentimentos.

Ainda que Pessoa, neste poema, não se julgue poeta, tudo não passa de um acerto de contas transversal. Afinal, diz ele que apenas vê o mundo. Mas não só isso, obviamente: Pessoa tem o dom de transportar para a escala verbal muito desse fardo que parece viver e morrer intocado no coração humano, sem que saibamos ou mesmo possamos canalizá-lo para um discurso que faça sentido aos nossos pares.

J.A.R. – H.C.

Fernando Pessoa
(1888-1935)

A Espantosa Realidade das Cousas

A espantosa realidade das cousas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada cousa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.

Basta existir para se ser completo.

Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais, naturalmente.
Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto.

Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.

Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.

Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.

Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer cousa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.

(7-11-1915)

Criador de Realidade
(Svetoslav Stoyanov: artista búlgaro)

Referência:

PESSOA, Fernando. A espantosa realidade das cousas. In: __________. Obra poética.  8. ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova Aguilar, 1981. p. 168-169. (Biblioteca Luso-Brasileira)

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