Jorge de Lima, o famoso autor de “Invenção de Orfeu” (1952), resenha em
rápidas linhas a visão mais comum que as pessoas têm da figura do poeta. Num
entorno do mundo que, por vezes, parece-lhe disparatado, o poeta é como um anjo,
sob cerrado processo catártico.
Há aqui menção aos mesmos estigmas que atingiram muitos dos grandes
poetas que por esta Terra já passaram: incompreensão, rejeição, solidão. Ele
próprio, um rebento que tem a valência de reconhecer as suas origens: “‘Sperai!
Cai no areal e na hora adversa / Que Deus concede aos seus / Para o intervalo
em que esteja a alma imersa / Em sonhos que são Deus”, como evoca o grande Fernando
Pessoa.
J.A.R. – H.C.
Jorge de Lima
(1893-1853)
A Vida Incomum do Poeta
Antes de tudo era um
anjo de Deus.
E sem pedir foi
enviado ao mundo.
Nasceu sem querer
numa hora amarga
com os estigmas e os
delitos dos pais.
Depois de sugar seios
mercenários
nasceram-lhe dentes
de roedor,
de carniceiro e de
mastigador.
Apesar disso era
manso sem saber por que
e já era homem antes
da virilidade.
Homem feito foi
convidado
a solenizar a sua
festa nupcial
e a transmitir sua
posteridade.
Deu filhos e deu
poemas ao mundo
que os não
compreendeu nem os aceitou.
Mas as suas alegrias
sendo outras,
seus caminhos, seus
amores sendo outros,
foi posto à margem
como um ser inútil.
Não se matou porque
um anjo sempre
não consentiu, lhe
segurando a mão.
Mas já havia chegado
o seu declínio:
Nada conseguiu, nada
o contentou.
Nasceu só, viveu só,
vai morrer só.
Então caminha para a
morte
sem surpresa nenhuma
sem saudade nenhuma
e também sem
recompensa nenhuma.
Anjo da Revelação
(William Blake: poeta
e artista inglês)
Referência:
LIMA, Jorge de. A vida incomum do
poeta. In: TORRES, Alexandre Pinheiro (Seleção, Introdução e Notas). Antologia da poesia brasileira: os
modernistas. v. III. Porto, PT: Livraria Chardron de Lello & Irmão Editores,
1984. p. 530.
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