Vai aqui uma justa homenagem deste bloguinho ao médico, diplomata e
escritor mineiro João Guimarães Rosa, um dos maiores nomes, se não for o maior,
da Literatura Brasileira.
Seu livro “Grande Sertão: Veredas”, de 1956, ombreia com clássicos de
nossa literatura, como “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1880) ou “Dom
Casmurro” (1899), de Machado de Assis, ou ainda “Vidas Secas” (1938), de
Graciliano Ramos.
A longa apreciação de sua obra, abaixo postada, pertence ao professor,
filólogo e linguista gaúcho Celso Luft (1921-1995), extraída de sua obra relacionada
no campo de referências.
J.A.R. – H.C.
João Guimarães Rosa
(1908-1967)
Apreciação da Obra por
Celso Pedro Luft (1979, p. 336-338)
N. em Cordisburgo
(Minas Gerais, 27.6.1908). M. no Bio de Janeiro (19.11.1967). Infância e
juventude na zona de Urucuia, que haveria de marcar-lhe a visão regionalista. Formado
em Medicina em Belo Horizonte, clinicou no interior mineiro (Itaguara), e foi
capitão-médico da Força Pública do seu Estado. Entrou depois na carreira diplomática.
No começo da Segunda Grande Guerra representava o Brasil em Hamburgo
(Alemanha), regressando à pátria após a declaração de guerra do Brasil ao Eixo.
Secretário da Embaixada em Bogotá (1942-4). Chefe de gabinete do Ministro Neves
da Fontoura (1946). Conselheiro da Embaixada de Paris (1948-51). Chefe de
gabinete do Ministro de Relações Exteriores (1951-3). Etc. Conquistou diversos prêmios
literários: Prêmio de Poesia, da Academia Brasileira de Letras (1936); Prêmio Sociedade
Filipe de Oliveira (1946); Prêmio Machado de Assis, do Instituto Nacional do
Livro (1956); Prêmio Cármen Dolores Barbosa (1956); Prêmio Paula Brito, da
Biblioteca Municipal do Bio de Janeiro (1957); etc. Em 1963, na vaga de João
Neves da Fontoura, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras. Foi também membro
da Sociedade de Geografia, do Bio de Janeiro.
Obras – Poesia: Magma (1936 – Prêmio de Poesia, da
Academia Brasileira de Letras; inédito). – Ficção – a) Contos e novelas: Sagarana (1946); Corpo de Baile, 2 vols. (1956); Primeiras
Estórias (1962). – 6) Romance: Grande
Sertão: Veredas (1956). – Reportagem: Com o Vaqueiro Mariano (1952).
Apreciação: João
Guimarães Rosa é dos escritores brasileiros da época pós-modernista um dos mais
festejados pela crítica, e certamente o mais original. Iniciou a carreira
literária como poeta – poesia em versos, quando a sua destinação era a poesia em
prosa ou a prosa poética. Mas o livro de poemas, Magma (1936), prêmio da Academia Brasileira de Letras, não chegou a
publicá-lo. Estreou assim com Sagarana,
contos e novelas regionalistas, mas de um regionalismo diferente, baseado na pesquisa
è elaboração artística da linguagem, incluída a regional. Enquanto os tipos anteriores
de regionalismo – o romântico de Alencar e Bernardo Guimarães, o realista de
Coelho Neto, Monteiro Lobato e Simões Lopes Neto, e o modernista de Lins do
Rego e José Américo – se compraziam no pitoresco local e na imitação ou
transcrição da linguagem popular e coloquial, Guimarães Rosa estiliza o
material que a pesquisa lhe revela. Já o título Sagarana exemplifica a revolução idiomático-literária: é termo
cunhado pelo autor – Saga “lenda
escrita, propriamente o que se diz ou conta” (al. sagen) + rana (sufixo tupi-guarani) “parecido com, tirante a, que
tem semelhança ou analogia com” (brancarana, caferana). A cunhagem de novas
formas para fins expressivos será uma constante em G. R. Neste livro de
estreia, apesar de páginas definitivas como, entre outras, “A hora e vez de
Augusto Matraga”, notam-se as naturais deficiências do estreante, a exterioridade
de processos estilísticos como a prosa rítmica, etc. A consagração definitiva,
com o pleno domínio do artista, viria dez anos após, com duas obras, essas
imortais, da primeira linha da ficção brasileira: Corpo de Baile e Grande Sertão:
Veredas. O novelista entrara corajosamente por um caminho novo, indiferente
à celeuma que a sua audaciosa solidão artística levantaria. De fato, a crítica
dividiu-se pró ou contra o fenômeno G. R., uns a falarem em genialidade, outros
em equívoco literário. A verdade é que a revolução artística de G. R. obrigou a
crítica brasileira a rever seus métodos rotineiros e sair do seu impressionismo
sem alcance. Era a “hora e vez” de críticos como Haroldo de Campos, Cavalcanti
Proença, Eduardo Portella, Oswaldino Marques e outros.
Corpo de Baile é um “corpo” de
novelas como o fora Sagarana; aqui
porém o novelista leva os seus processos estilísticos às últimas consequências.
Concebido inicialmente como uma das novelas da coletânea, Grande Sertão acabou em dimensões de encorpado romance. Mas o
espírito e o estilo são os mesmos. G. R. criava a ficção estruturalmente
sertaneja, de ressonâncias universais. Não o mero pitoresco local e linguajar
típico, e sim a recriação poética de uma cosmovisão sertaneja – eis o objetivo do
novelista. O ambiente, os costumes, as tradições, os modismos e a fala
peculiares às personagens enfocadas, são apenas um suporte para a sondagem e
meditação dos grandes problemas humanos de todos os tempos e lugares. Em vez da
rasa transcrição de certo regionalismo sem nível artístico, procura-se aqui
recriar, amoldar esteticamente o material genuíno. Daí o cunho paradoxalmente
regionalista e universal. Os hábitos locais, os pequenos dramas interioranos
respiram uma inquietação ética e metafísica universal. Já se frisou o quanto há
de dostoievskiano em muitas páginas rosianas. Grande Sertão liga-se à tradição literária ocidental dos pactos
diabólicos. Riobaldo, antigo jagunço, narra a sua dramática história. Na tarefa
de vingar seu chefe Joca Ramiro, assassinado à traição, fez um pacto com o demônio.
Esse tema fáustico e outros que o romance desenvolve, projetam a obra à altura
da melhor literatura mundial deste século.
O que dificulta o
acesso à obra de G. R., e a não poucos afasta ou choca irreconciliavelmente, é
a sua linguagem. Muitos consideram seus livros ilegíveis, esotéricos. Em verdade,
G. R. é desses autores que exigem imaginação poética a quem os lê. Na ânsia de
exprimir experiências e sensações irredutivelmente pessoais, o escritor-poeta
se vê forçado a reavivar os elementos idiomáticos viciados e gastos pelo uso
cotidiano. Neste empenho, prefere a maioria ficar num meio-termo de neologismos
morfológicos ou semânticos, de metáforas renovadoras ou combinações inusitadas
de palavras. G. R., já o dissemos, levou a recriação da linguagem às últimas
consequências. Para ele, na luta pela expressividade absoluta da língua, vale
tudo: joga com o arcaico e o moderno, o erudito e o popular, o nacional e o
estrangeiro, o vulgar e o científico, o nobre e a gíria. Quando o elemento vernáculo
não basta, vai ao latim, ao grego ou a algum idioma estrangeiro. O seu
instrumento de arte é a linguagem funcional
– a linguagem constantemente amoldada e recriada em função do que o autor pensa
ou sente, dó que as suas personagens sentem ou pensam. Numa estória de crianças recorre à linguagem
infantil, como à gíria marítima num conto de homens do mar, ou à fala sertaneja
nos diálogos de campônios ou jagunços. É extraordinário o acervo de
conhecimentos e o poliglotismo que o autor revela nesse esforço. G. R.
inaugura, assim, uma nova fase na ficção e na prosa, brasileira, e é o ponto de
partida para uma fecunda renovação literária.
Alguns exemplos da
prosa artística, poética, de G. R. (Grande
Sertão): Para ele olhei, o tanto, o tanto, até ele anoitecer em meus olhos. –
No átimo, supri a claridade completa de ideia... – O pelo da gente se arrupeia
de total gastura – cheio chorou, feito criança – Vá de retro! – nanje os dias e
as noites não recordo. – E de repente aqueles homens podiam ser montão,
montoeira, aos milhares mis e centos milhentos, vinham se desentocando – Ah, as
coisas influentes da vida chegam assim sorrateiras, ladroalmente. – O pássaro que
se separa de outro, vai voando adeus o tempo todo. – O dia parava formoso,
suando sol, mesmo o vento suspendido. – (Primeiras Estórias): O silêncio se
torcia. – à tona dos espelhos, em sua lisa, funda lâmina, em seu lume frio. –
Chegava, após íngremes horas e encostas. – Almoçou-se, com-fomemente, apesardes.
– grito meio ferrugento dos tucanos...
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O que eu vi, sempre, é que toda a ação
principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada,
que vai rompendo rumo (ROSA, 2001, p. 194).
Referências:
LUFT, Celso Pedro. João Guimarães Rosa.
In: __________. Literatura portuguesa e
brasileira. Enciclopédia Globo para os Cursos Fundamental e Médio.
Organização de Álvaro Magalhães. V. II. Porto Alegre, RS: Globo, 1979. p.
336-338.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 19 ed. Rio de
Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 2001.
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