O professor, escritor e poeta Paes Loureiro é figura por demais
conhecida nos meios culturais paraenses. Dentre suas obras poéticas, sobressaem
as coletâneas de poemas “Altar em Chamas”, de 1989, e “Cantares Amazônicos”, de
1990.
Mas o que temos por agora, apesar de plasmado aqui e ali por achados
eminentemente poéticos, não é um exemplar de sua vigorosa poesia, senão um excerto
retirado de sua tese de doutoramento (vide campo “Referência”), elaborada na
Universidade Sorbonne-Paris, sob a orientação do sociólogo francês Michel
Maffesoli.
Nele, sobram termos regionais que nem mesmo a um seu conterrâneo, como eu, se
poderia exigir conhecimento, embora, pelas descrições, seja possível inferir
exatamente sobre a que realidades o escritor se refere.
J.A.R. – H.C.
João de Jesus Paes Loureiro
(n. 1939)
A Visualidade Amazônica
(LOUREIRO, 2001, p.
127-129)
Pelas margens do rios
há os extensos e plásticos aningais, verdadeiros tapetes de aguapés que se
estendem flutuantes, ondeando ao movimento provocado pelas aves aquáticas e os
cardumes de peixes. Os cardumes de pratiqueiras (peixes semelhantes às
tainhas), por exemplo, são de uma grande beleza quando se alastram pelo rio
(podendo atingir, segundo crença nativa, vários quilômetros de extensão). Elas
avançam, elas saltam, elas mudam conjuntamente de direção, provocando um
fervilhamento nas águas, fazendo ecoar um rumor semelhante ao das ondas que se
quebram sucessivamente nas praias. As águas encrespam-se como epidermes arrepiadas
de frio ou medo. Vez por outra, pardos mergulhões executam voos curvilíneos,
solenes, antes de flecharem mergulhando em busca de algum peixe. Em seguida,
emergem súbitos, como jatos vivos de um chafariz, ascendem voando com o peixe
ainda trêmulo no bico. E reconquistam o azul até novo mergulho. Pelas margens
dos rios estendem-se alvas praias, comumente com parte de sua superfície
coberta por uma vegetação rasteira extremamente verde. São lugares de pouso,
eleitos por várias aves em busca de comida, pois ali proliferam – na parte
lamacenta dos mangais – siris, sararás, caranguejos. Dentre as aves, cabe fazer
atenção aos guarás. Eles são de uma rica e flamejante plumagem vermelho-carmim.
Quando ainda estão pequenos, são negros como carvão. Mas, quando crescem, suas
penas tornam-se como brasas vivas, recobrindo-lhes o corpo equilibrado sobre
pernas longas e delicadas, o que lhes confere um porte elegante como o das
garças.
Outra iluminura a
enriquecer a paisagem do rio é a dos mururés. O poeta paraense Ruy Barata se
reconhece e se irmana com eles: “Esse rio é minha rua / Minha e tua mururé”.
Suas folhas são espessas e se espalmam horizontalmente à superfície das águas.
Essas ninfeáceas têm raízes fortes que se entrelaçam sob as águas, formando uma
firme estrutura, como se fossem verdadeiras ilhas vegetais flutuantes. Essas
“ilhas de mururés” são denominadas pelos caboclos de periantãs ou marapatás.
Elas vagam à flor das águas dos rios na enchente e na vazante, como se fossem
um pedaço amputado da mata, escondendo muitas cobras, jacarés, garças e
gaivotas, que delas fazem ninho ou pouso itinerante. Pode ocorrer também que
alguém que navegue em igarités (pequenas canoas de tábuas ou escavadas a fogo
em tronco de árvores) amarre sua canoa nessas ilhotas peregrinas, aproveitando
a oportunidade para descansar. Como um solitário Robson, reinando
displicentemente em sua terra de posse, unicamente sua e dos insetos e répteis
– solitário habitante como todos os aventureiros de todas as terras reais ou
imaginárias. A expressão que designa essa atitude é “ir de bubuia”, porque
“bubuiar” é verbo que expressa a ação de seguir flutuando ao sabor das águas do
rio.
Impossível seria não
lembrar a vitória-régia. É a rainha das ninfeáceas e a grande flor aquática da
região. Suas folhas verdes chegam a medir 1,8 m de diâmetro. A flor está
catalogada como a maior da América, com 30 cm de diâmetro, e é constituída por
uma profusão de pétalas, cujas cores se vão matizando progressivamente da manhã
para a noite: alvas quando o dia nasce, vão passando ao róseo até à tarde e do
róseo chegam ao quase rubro, quando a noite tomba. Durante a noite seguinte,
tornam-se brancas para, a partir do nascer do sol, recomeçarem o ciclo
cromático. As vitórias-régias estendem-se como tapetes, principalmente nos
lagos ou enseadas, muitas vezes escondendo jacarés sob suas folhas, reeditando
a imagem mítica dos perigos que se ocultam dialeticamente na beleza.
Vitória-Régia
Referência:
LOUREIRO, João de Jesus Paes. Cultura amazônica: uma poética do
imaginário. São Paulo, SP: Escrituras, 2001. (Obras Reunidas)
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