Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 23 de junho de 2015

João Cabral de Melo Neto - A Lição de Poesia

Num labor diuturno com as palavras, o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto ora nos propõe um poema com temática algo parecida com a do famoso “Poesia”, de Carlos Drummond de Andrade: o esforço poético.

Uma lida que Cabral circunscreve a metafóricas “vinte palavras” de salgado teor – das quais também se conhece o “funcionamento, a evaporação, a densidade” –, e com as quais se expande o mundo para além de suas formas e fronteiras aparentemente estáveis.

J.A.R. – H.C.

João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)

A Lição de Poesia

1. Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.

Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:

nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.

2. A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.

Carvão de lápis, carvão
da ideia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.

3. A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.

A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis – naturezas vivas.

E as vinte palavras recolhidas
nas águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.

Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.

Nascer do Sol
(Albert Bierstadt: pintor prussiano)

Referência:

MELO NETO, João Cabral de. A lição de poesia. In: __________. Antologia poética. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Livraria José Olympio Editora - Sabiá, 1973. p. 265-266.

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