Num labor diuturno com as palavras, o poeta pernambucano João Cabral de
Melo Neto ora nos propõe um poema com temática algo parecida com a do famoso “Poesia”, de Carlos Drummond de Andrade: o
esforço poético.
Uma lida que Cabral circunscreve a metafóricas “vinte palavras” de
salgado teor – das quais também se conhece o “funcionamento, a evaporação, a
densidade” –, e com as quais se expande o mundo para além de suas formas e fronteiras
aparentemente estáveis.
J.A.R. – H.C.
João Cabral de Melo Neto
(1920-1999)
A Lição de Poesia
1. Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em
branco:
princípio do mundo, lua
nova.
Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:
nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.
2. A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os
monstros
germinados em seu
tinteiro.
Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.
Carvão de lápis, carvão
da ideia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.
3. A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde
corre o sangue
de suas veias de água
salgada.
A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis – naturezas vivas.
E as vinte palavras recolhidas
nas águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.
Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.
Nascer do Sol
(Albert Bierstadt:
pintor prussiano)
Referência:
MELO NETO, João Cabral de. A lição de
poesia. In: __________. Antologia
poética. 2. ed. Rio de Janeiro, RJ: Livraria José Olympio Editora - Sabiá,
1973. p. 265-266.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário