Num misto de reflexão sobre as filigranas do ser e as vicissitudes que
as circunstâncias da vida nos trazem, tudo sob a onipresente intuição pessoana –
afinal, quem, lendo o poema que abaixo se transcreve, não se lembrará desta
famosa passagem de Pessoa?: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer
ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” –, Nejar parece
contemplar a sua própria existência de uma mirada, como diríamos?, meio desconfortável.
Ou não: ensopado pelo banho sem quimeras da realidade, ele resolveu nos
mostrar, de forma ineludível, tudo aquilo que se passa debaixo do sol! Somos,
como diria o “poetinha”, “uma aquarela que, um dia enfim, descolorirá!”.
J.A.R. – H.C.
Carlos Nejar
(n. 1939)
Livro do Sol
As muitas águas não puderam extinguir
o amor, nem os rios terão força para o
submergir.
(Salomão, Cântico dos Cânticos, 8, 7-8)
I
As coisas existem
além delas.
Não padecem, nem
sofrem,
mas existem
e projetam a sombra
nas janelas.
Penetrar a substância
que as anima
como a noite as
embala no seu ventre,
como a noite as
concentra e precipita,
não tem asas nem
plumas.
Só silêncio
sonoro como as algas.
Só silêncio
de astros
na caverna.
As coisas nos prendem
junto a elas;
nos contemplam,
nos amam
mas nos prendem.
E ficamos calados
na amurada,
vendo as coisas
pensarem
no que somos.
II
Somos nada.
E o nada nos consome,
nos abraça, nos
vence.
Somos nada.
Somos asas fechadas
para o voo
ao som de estranhas
músicas,
de gerações emersas,
ou parques
estendidos para o
mar.
As fronteiras divisam
nosso sangue.
Julgamo-nos libertos,
mas não somos.
O clamor das cidades
nos incita
para a fuga. O clamor
das cidades
nos esmaga e as
máquinas
trituram nosso sonho.
Somos nada. Os frutos
se reúnem para a
noite.
Condenados tecemos a
cadência
das conchas, das
areias, dos espaços.
Virão depois de nós
homens, mulheres
que hão de quebrar
cadeias, nuvens, medos.
Mas nunca hão de rasgar
as rochas nuas
de um século maior do
que a montanha.
Nas ondas somos
barcos enlunados;
nos olhos somos sais,
peixes, minutos;
nos braços somos
gestos que apodrecem.
Ninguém nos elucida
para o mundo.
Chorar é tão inútil
como um menino morto
sobre as rosas. E o
nada que nós somos,
mais inútil que o
sepultamento de um menino.
Perdemos o roteiro de
ser homem.
A dor que nos gerou
ficou escrita
no deserto, no fogo,
nas estradas.
Vestimo-nos de
auroras e veludo,
de chuvas, estrelas e
purezas.
Vestimo-nos de tudo e
nada somos.
A morte se repete em
nosso rosto;
escondemos a morte e
nada somos.
O abismo nos convida
para o sono;
escondemos o abismo e
nada somos.
Sentimo-nos sem mãos
e acariciamos
as estações, os
meses, as semanas.
Nós amamos a vida e
nada somos.
Ancoramos no amor e
não amamos
a não ser o que
somos. E o que somos?
Nós buscamos na carne
o esquecimento,
a ferrugem dos ossos,
o abandono.
Nós buscamos no amor
o esquecimento,
a infância que
tivemos entre os anjos,
o domínio do fogo e
da poesia,
o mistério que flui
entre dois corpos.
As florestas que os
unem no delírio.
Dia a dia mudamos
como um rio.
Corremos entre as
pedras e mudamos
na epiderme, no ar,
nos olhos gastos.
Nós cansamos de tudo
e nada somos.
E o que somos
dissolve-se no tempo,
e o que somos a noite
nos retira
sem deixar um sulco
de navio.
Coisas Comuns
(Barbara Groff: pintora
norte-americana)
Referência:
NEJAR, Carlos. Livro do sol. In: CONGÍLIO,
Mariazinha (Seleção e coordenação). Antologia
de poetas brasileiros. 1. ed. Lisboa, PT: Universitária, 2000. p. 53-55.
❁
Muito bom! Adorei essa poesia. Vou até coloconar no meu blog também. Fica o convite para quem quiser conhecer.
ResponderExcluirwww.jessicaiancoski.com
Valeu, Jéssica: gostei demais do seu site. Vou tê-lo como um dos que costumo navegar todas as manhãs para ver o que neles há de bom!
ExcluirUm abraço,
João A. Rodrigues