Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 29 de junho de 2015

Carlos Nejar - Livro do Sol (Trechos I e II)

Num misto de reflexão sobre as filigranas do ser e as vicissitudes que as circunstâncias da vida nos trazem, tudo sob a onipresente intuição pessoana – afinal, quem, lendo o poema que abaixo se transcreve, não se lembrará desta famosa passagem de Pessoa?: “Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.” –, Nejar parece contemplar a sua própria existência de uma mirada, como diríamos?, meio desconfortável.

Ou não: ensopado pelo banho sem quimeras da realidade, ele resolveu nos mostrar, de forma ineludível, tudo aquilo que se passa debaixo do sol! Somos, como diria o “poetinha”, “uma aquarela que, um dia enfim, descolorirá!”.

J.A.R. – H.C.

Carlos Nejar
(n. 1939)

Livro do Sol

As muitas águas não puderam extinguir
o amor, nem os rios terão força para o submergir.
(Salomão, Cântico dos Cânticos, 8, 7-8)

I

As coisas existem além delas.
Não padecem, nem sofrem,
mas existem
e projetam a sombra nas janelas.

Penetrar a substância que as anima
como a noite as embala no seu ventre,
como a noite as concentra e precipita,
não tem asas nem plumas.

Só silêncio
sonoro como as algas.
Só silêncio
de astros
na caverna.

As coisas nos prendem
junto a elas;
nos contemplam,
nos amam
mas nos prendem.
E ficamos calados
na amurada,
vendo as coisas
pensarem
no que somos.

II

Somos nada.
E o nada nos consome,
nos abraça, nos vence.
Somos nada.

Somos asas fechadas para o voo
ao som de estranhas músicas,
de gerações emersas, ou parques
estendidos para o mar.

As fronteiras divisam nosso sangue.
Julgamo-nos libertos, mas não somos.
O clamor das cidades nos incita
para a fuga. O clamor das cidades
nos esmaga e as máquinas
trituram nosso sonho.

Somos nada. Os frutos
se reúnem para a noite.
Condenados tecemos a cadência
das conchas, das areias, dos espaços.
Virão depois de nós homens, mulheres
que hão de quebrar cadeias, nuvens, medos.
Mas nunca hão de rasgar as rochas nuas
de um século maior do que a montanha.

Nas ondas somos barcos enlunados;
nos olhos somos sais, peixes, minutos;
nos braços somos gestos que apodrecem.
Ninguém nos elucida para o mundo.

Chorar é tão inútil como um menino morto
sobre as rosas. E o nada que nós somos,
mais inútil que o sepultamento de um menino.

Perdemos o roteiro de ser homem.
A dor que nos gerou ficou escrita
no deserto, no fogo, nas estradas.
Vestimo-nos de auroras e veludo,
de chuvas, estrelas e purezas.
Vestimo-nos de tudo e nada somos.

A morte se repete em nosso rosto;
escondemos a morte e nada somos.
O abismo nos convida para o sono;
escondemos o abismo e nada somos.

Sentimo-nos sem mãos e acariciamos
as estações, os meses, as semanas.

Nós amamos a vida e nada somos.
Ancoramos no amor e não amamos
a não ser o que somos. E o que somos?

Nós buscamos na carne o esquecimento,
a ferrugem dos ossos, o abandono.
Nós buscamos no amor o esquecimento,
a infância que tivemos entre os anjos,
o domínio do fogo e da poesia,
o mistério que flui entre dois corpos.
As florestas que os unem no delírio.

Dia a dia mudamos como um rio.
Corremos entre as pedras e mudamos
na epiderme, no ar, nos olhos gastos.

Nós cansamos de tudo e nada somos.
E o que somos dissolve-se no tempo,
e o que somos a noite nos retira
sem deixar um sulco de navio.

Coisas Comuns
(Barbara Groff: pintora norte-americana)

Referência:

NEJAR, Carlos. Livro do sol. In: CONGÍLIO, Mariazinha (Seleção e coordenação). Antologia de poetas brasileiros. 1. ed. Lisboa, PT: Universitária, 2000. p. 53-55.

2 comentários:

  1. Muito bom! Adorei essa poesia. Vou até coloconar no meu blog também. Fica o convite para quem quiser conhecer.

    www.jessicaiancoski.com

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    1. Valeu, Jéssica: gostei demais do seu site. Vou tê-lo como um dos que costumo navegar todas as manhãs para ver o que neles há de bom!
      Um abraço,
      João A. Rodrigues

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