Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 1 de junho de 2015

Erich Fromm - Ter ou Ser

O psicanalista e sociólogo alemão de origem judaica Erich Fromm foi integrante, como muitos outros autores de mesma estirpe, da denominada Escola de Frankfurt.

Homem de cultura, escreveu e muito sobre os dilemas experimentados pela sociedade contemporânea, em especial a norte-americana, haja vista que passou boa parte de sua vida ensinando nos EUA.

O excerto de sua autoria que abaixo transcrevemos surge, a bem de seus argumentos sobre as formas “ter” e “ser” de existência, como ilustração no domínio das letras, com citações extraídas das obras de Basho, Tennyson e Goethe.

J.A.R. – H.C.

Erich Fromm
(1900-1980)

Exemplos em Várias Manifestações Poéticas

Como introdução ao entendimento da diferença entre os modos ter e ser de existência, tomo como ilustração dois poemas de conteúdo semelhante, que o falecido D. T. Suzuki mencionou em “Conferências sobre o Zen Budismo”. Um deles é um haiku de Basho, poeta japonês que viveu de 1644 a 1694; o outro poema é de um poeta inglês do século XIX, Tennyson. Cada um desses poetas alude a experiência semelhante: sua reação diante de uma flor que vê durante uma caminhada. Os versos de Tennyson são:

Flor nascida nas fendas de um muro,
Arranco-te e a raiz da fenda em que estás
E te contemplo toda, em minha mão.
Pequena flor – se eu entendesse
Quem és, raiz e pétalas, flor inteira,
O mistério de Deus e do homem eu saberia.

Traduzido da maneira mais livre, o haiku de Basho seria assim:

Olhando eu cuidadosamente,
Vejo a nazuna florindo
Em meio à sebe!

A diferença é contundente. Tennyson reage à flor querendo tê-la. Ele “arranca-a” “com raiz e tudo”. E não obstante conclua com uma especulação intelectual sobre a possível função da flor quanto a lhe dar a intuição sobre a natureza de Deus e do homem, a flor mesma é morta em consequência do seu interesse nela. Tennyson, como o vimos neste poema, pode ser comparado ao cientista ocidental que procura a verdade mediante o desmembramento da vida.

A reação de Basho diante da flor é totalmente diferente. Ele não quer arrancá-la; não pretende nem mesmo tocá-la. Tudo o que quer é “olhar cuidadosamente” para “vê-la”. Eis a interpretação de Suzuki:

É provável que Basho estivesse passando por uma senda campestre quando deparou com alguma coisa um tanto desprezada em meio à sebe. Chegou-se então mais perto, deu uma olhadela, e verificou que era nada menos que uma planta silvestre, muito insignificante e em geral despercebida dos passantes. Trata-se de um fato evidente relatado no poema, sem qualquer manifestação especificamente poética senão, talvez, nas últimas duas sílabas que, em japonês, soariam kana. Esta partícula, frequentemente aglutinada a um substantivo, adjetivo ou advérbio, significa certo sentimento de admiração ou louvor, tristeza ou alegria, e pode às vezes, muito adequadamente, ser traduzida por um sinal de exclamação. No presente haiku, todo o verso termina com esse sinal.

Tennyson, como se vê, precisa possuir a flor a fim de entender as pessoas e a natureza, e ao tê-la, a flor é destruída. O que Basho quer é ver, e não apenas olhar para a flor, mas identificar-se, ser uno com ela, e deixá-la viver. A diferença entre Tennyson e Basho é plenamente explicada neste poema de Goethe:

Descoberta

Andava eu pelo bosque
Inteiramente só,
Ao léu, por nada
Pensar ou querer.

E percebi na sombra
Uma florzinha só,
Clara como as estrelas
Ou dois olhos brilhantes.

Fiz menção de arrancá-la,
Quando a ouvi dizer, suavemente:
Será para que eu morra
Que devo ser quebrada?

E tirei-a do chão
Com todas as raízes
E ao jardim conduzi
Para junto do lar.

E de novo a enterrei
Num tranquilo lugar
Onde ela vive e cresce
E está sempre florindo.

Goethe, andando a esmo, despreocupadamente, é atraído pela florzinha brilhante. Narra ter sentido um impulso que era o mesmo como o de Tennyson: arrancá-la. Mas, diferentemente de Tennyson, Goethe se apercebe de que arrancá-la seria matar a flor. Porque, para Goethe, a flor vive de tal modo que fala e o adverte; e ele resolve o problema diferentemente de Tennyson ou Basho. Ele pega a flor, "com todas as raízes", e planta-a de novo de modo que sua vida não seja destruída. Goethe situa-se, como de fato estava, entre Tennyson e Basho: para ele, no momento crucial, a força da vida é mais forte que a força da mera curiosidade intelectual. Evidentemente, neste belo poema Goethe exprime o núcleo de seu conceito de natureza inquiridora.

O relacionamento de Tennyson com a flor está no modo de ter, ou posse – não posse material, mas de conhecimento. O relacionamento de Basho e de Goethe está no modo de ser. Entendo por modo ser de existência aquele em que nem se tem nada, nem se anseia por ter alguma coisa, senão o emprego das faculdades produtivamente, alegre, numa identificação com o mundo.

Goethe, o grande amante da vida, um dos mais notáveis lutadores contra o desmembramento e mecanização da humanidade, exprimiu o ser em vez de o ter em muitos de seus poemas. O seu Fausto é um relato dramático do conflito entre ser e ter (este último representado por Mefistófeles), enquanto no poema seguinte ele exprime a qualidade de ser com a mais perfeita singeleza:

Propriedade

Sei que nada a mim pertence
Senão o pensamento que, liberto,
De minha alma fluirá.
E todo momento feliz
Que bem no fundo
Me deixe gozar
O bom destino.

A diferença entre ter e ser não é fundamentalmente uma questão de Oriente e Ocidente. É, isto sim, uma diferença entre uma sociedade centrada em torno de pessoas e outra centrada em torno de coisas. A orientação no sentido do ter é característica da sociedade industrial ocidental, na qual a avidez por dinheiro, fama, e poder tornou-se o tema dominante da vida. Sociedades menos alienadas — como a sociedade medieval, a indiana zuni, as sociedades tribais africanas que não foram afetadas pelas ideias modernas de “progresso” – têm também seus Bashos. Talvez, após mais algumas gerações de industrialização, os japoneses venham a ter os seus Tennysons. Não é que o homem ocidental seja incapaz de compreender os sistemas orientais, como o Zen Budismo (como Jung pensava), mas o homem moderno é incapaz de compreender o espírito de uma sociedade que não esteja centrada na propriedade e na avidez. Na verdade, os escritos de Mestre Eckhart (tão difíceis de compreender como Basho ou Zen) e os de Buda são apenas dois dialetos de uma mesma língua.


Referência:

FROMM, Erich. Ter ou ser. Tradução de Nathanael C. Caixeiro. 4. ed. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1982. p. 36-39.

Nenhum comentário:

Postar um comentário