O psicanalista e sociólogo alemão de origem judaica Erich Fromm foi
integrante, como muitos outros autores de mesma estirpe, da denominada Escola
de Frankfurt.
Homem de cultura, escreveu e muito sobre os dilemas experimentados pela
sociedade contemporânea, em especial a norte-americana, haja vista que passou
boa parte de sua vida ensinando nos EUA.
O excerto de sua autoria que abaixo transcrevemos surge, a bem de seus
argumentos sobre as formas “ter” e “ser” de existência, como ilustração no
domínio das letras, com citações extraídas das obras de Basho, Tennyson e
Goethe.
J.A.R. – H.C.
Erich Fromm
(1900-1980)
Exemplos em Várias Manifestações Poéticas
Como introdução ao
entendimento da diferença entre os modos ter e ser de existência, tomo como
ilustração dois poemas de conteúdo semelhante, que o falecido D. T. Suzuki
mencionou em “Conferências sobre o Zen Budismo”. Um deles é um haiku de Basho, poeta japonês que viveu
de 1644 a 1694; o outro poema é de um poeta inglês do século XIX, Tennyson.
Cada um desses poetas alude a experiência semelhante: sua reação diante de uma
flor que vê durante uma caminhada. Os versos de Tennyson são:
Flor nascida nas
fendas de um muro,
Arranco-te e a raiz
da fenda em que estás
E te contemplo toda,
em minha mão.
Pequena flor – se eu
entendesse
Quem és, raiz e
pétalas, flor inteira,
O mistério de Deus e
do homem eu saberia.
Traduzido da maneira
mais livre, o haiku de Basho seria
assim:
Olhando eu
cuidadosamente,
Vejo a nazuna florindo
Em meio à sebe!
A diferença é
contundente. Tennyson reage à flor querendo tê-la. Ele “arranca-a” “com raiz e
tudo”. E não obstante conclua com uma especulação intelectual sobre a possível
função da flor quanto a lhe dar a intuição sobre a natureza de Deus e do homem,
a flor mesma é morta em consequência do seu interesse nela. Tennyson, como o
vimos neste poema, pode ser comparado ao cientista ocidental que procura a
verdade mediante o desmembramento da vida.
A reação de Basho
diante da flor é totalmente diferente. Ele não quer arrancá-la; não pretende
nem mesmo tocá-la. Tudo o que quer é “olhar cuidadosamente” para “vê-la”. Eis a
interpretação de Suzuki:
É provável que Basho estivesse passando por uma senda campestre quando
deparou com alguma coisa um tanto desprezada em meio à sebe. Chegou-se então
mais perto, deu uma olhadela, e verificou que era nada menos que uma planta
silvestre, muito insignificante e em geral despercebida dos passantes. Trata-se
de um fato evidente relatado no poema, sem qualquer manifestação
especificamente poética senão, talvez, nas últimas duas sílabas que, em
japonês, soariam kana. Esta
partícula, frequentemente aglutinada a um substantivo, adjetivo ou advérbio,
significa certo sentimento de admiração ou louvor, tristeza ou alegria, e pode
às vezes, muito adequadamente, ser traduzida por um sinal de exclamação. No
presente haiku, todo o verso termina
com esse sinal.
Tennyson, como se vê,
precisa possuir a flor a fim de entender as pessoas e a natureza, e ao tê-la, a flor é destruída. O que Basho
quer é ver, e não apenas olhar para a flor, mas identificar-se, ser uno com
ela, e deixá-la viver. A diferença entre Tennyson e Basho é plenamente
explicada neste poema de Goethe:
Descoberta
Andava eu pelo bosque
Inteiramente só,
Ao léu, por nada
Pensar ou querer.
E percebi na sombra
Uma florzinha só,
Clara como as
estrelas
Ou dois olhos
brilhantes.
Fiz menção de
arrancá-la,
Quando a ouvi dizer,
suavemente:
Será para que eu
morra
Que devo ser
quebrada?
E tirei-a do chão
Com todas as raízes
E ao jardim conduzi
Para junto do lar.
E de novo a enterrei
Num tranquilo lugar
Onde ela vive e
cresce
E está sempre
florindo.
Goethe, andando a
esmo, despreocupadamente, é atraído pela florzinha brilhante. Narra ter sentido
um impulso que era o mesmo como o de Tennyson: arrancá-la. Mas, diferentemente
de Tennyson, Goethe se apercebe de que arrancá-la seria matar a flor. Porque,
para Goethe, a flor vive de tal modo que fala e o adverte; e ele resolve o
problema diferentemente de Tennyson ou Basho. Ele pega a flor, "com todas
as raízes", e planta-a de novo de modo que sua vida não seja destruída.
Goethe situa-se, como de fato estava, entre Tennyson e Basho: para ele, no
momento crucial, a força da vida é mais forte que a força da mera curiosidade
intelectual. Evidentemente, neste belo poema Goethe exprime o núcleo de seu
conceito de natureza inquiridora.
O relacionamento de
Tennyson com a flor está no modo de ter, ou posse – não posse material, mas de
conhecimento. O relacionamento de Basho e de Goethe está no modo de ser.
Entendo por modo ser de existência aquele em que nem se tem nada, nem se anseia por
ter alguma coisa, senão o emprego das faculdades produtivamente, alegre,
numa identificação com o mundo.
Goethe, o grande
amante da vida, um dos mais notáveis lutadores contra o desmembramento e
mecanização da humanidade, exprimiu o ser em vez de o ter em muitos de seus
poemas. O seu Fausto é um relato
dramático do conflito entre ser e ter (este último representado por
Mefistófeles), enquanto no poema seguinte ele exprime a qualidade de ser com a
mais perfeita singeleza:
Propriedade
Sei que nada a mim
pertence
Senão o pensamento
que, liberto,
De minha alma fluirá.
E todo momento feliz
Que bem no fundo
Me deixe gozar
O bom destino.
A diferença entre ter
e ser não é fundamentalmente uma questão de Oriente e Ocidente. É, isto sim,
uma diferença entre uma sociedade centrada em torno de pessoas e outra centrada
em torno de coisas. A orientação no sentido do ter é característica da sociedade
industrial ocidental, na qual a avidez por dinheiro, fama, e poder tornou-se o
tema dominante da vida. Sociedades menos alienadas — como a sociedade medieval,
a indiana zuni, as sociedades tribais africanas que não foram afetadas pelas
ideias modernas de “progresso” – têm também seus Bashos. Talvez, após mais
algumas gerações de industrialização, os japoneses venham a ter os seus
Tennysons. Não é que o homem ocidental seja incapaz de compreender os sistemas
orientais, como o Zen Budismo (como Jung pensava), mas o homem moderno é
incapaz de compreender o espírito de uma sociedade que não esteja centrada na
propriedade e na avidez. Na verdade, os escritos de Mestre Eckhart (tão
difíceis de compreender como Basho ou Zen) e os de Buda são apenas dois dialetos
de uma mesma língua.
Referência:
FROMM, Erich. Ter ou ser. Tradução de Nathanael C. Caixeiro. 4. ed. Rio de
Janeiro, RJ: Zahar, 1982. p. 36-39.
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