Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 16 de junho de 2015

Ruy Belo - A Mão no Arado

Um sabe-se lá de identificação, que não lograria bem explicar, levou-me a escolher, para hoje, este poema do poeta lusitano Ruy Belo. Há nele suficiente imersão no estado de espírito do comum dos homens, ele próprio um vate, que faz tanger as cordas mais lúgubres da existência.

 

A tristeza, diga-se, também tem o poder de realizar belas obras: afinal, na arte literária, diríamos que ela constitui um dos mais importantes mananciais, senão o principal, de onde surgem expressivas criações. Aquelas capazes de emanar todo o poder de enternecimento e abnegação.

 

J.A.R. – H.C.

 

Ruy Belo

(1933-1978)

 

A Mão no Arado

 

Feliz aquele que administra sabiamente

a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias

Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará

 

Oh! como é triste envelhecer à porta

entretecer nas mãos um coração tardio

Oh! como é triste arriscar em humanos regressos

o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão

ao longo do mar transbordante de nós

no demorado adeus da nossa condição

É triste no jardim a solidão do sol

vê-lo desde o rumor e as casas da cidade

até uma vaga promessa de rio

e a pequenina vida que se concede às unhas

Mais triste é termos de nascer e morrer

e haver árvores ao fim da rua

 

É triste ir pela vida como quem

regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro

É triste no outono concluir

que era o verão a única estação

Passou o solitário vento e não o conhecemos

e não soubemos ir até ao fundo da verdura

como rios que sabem onde encontrar o mar

e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver

através de palavras de uma água para sempre dita

Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã

 

Triste é comprar castanhas depois da tourada

entre o fumo e o domingo na tarde de novembro

e ter como futuro o asfalto e muita gente

e atrás a vida sem nenhuma infância

revendo tudo isto algum tempo depois

A tarde morre pelos dias fora

É muito triste andar por entre Deus ausente

 

Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente

 

Em: “O problema da habitação” (1962)

 

Tristeza

(Anphia Coetser: pintora sul-africana)

 

Referência:

 

BELO, Ruy. A mão no arado. In: COSTA E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (Seleção e Introdução). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999. p. 266-267.

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