Um sabe-se lá de identificação, que não lograria bem explicar, levou-me
a escolher, para hoje, este poema do poeta lusitano Ruy Belo. Há nele
suficiente imersão no estado de espírito do comum dos homens, ele próprio um
vate, que faz tanger as cordas mais lúgubres da existência.
A tristeza, diga-se, também tem o poder de realizar belas obras: afinal,
na arte literária, diríamos que ela constitui um dos mais importantes mananciais,
senão o principal, de onde surgem expressivas criações. Aquelas capazes de emanar
todo o poder de enternecimento e abnegação.
J.A.R. – H.C.
Ruy Belo
(1933-1978)
A Mão no Arado
Feliz aquele que
administra sabiamente
a tristeza e aprende
a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses
e os anos nunca lhe faltará
Oh! como é triste envelhecer
à porta
entretecer nas mãos
um coração tardio
Oh! como é triste
arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das
extremas manhãs do verão
ao longo do mar
transbordante de nós
no demorado adeus da
nossa condição
É triste no jardim a
solidão do sol
vê-lo desde o rumor e
as casas da cidade
até uma vaga promessa
de rio
e a pequenina vida
que se concede às unhas
Mais triste é termos
de nascer e morrer
e haver árvores ao
fim da rua
É triste ir pela vida
como quem
regressa e entrar
humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono
concluir
que era o verão a
única estação
Passou o solitário
vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até
ao fundo da verdura
como rios que sabem
onde encontrar o mar
e com que pontes com
que ruas com que gentes com que
montes conviver
através de palavras
de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é
recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar
castanhas depois da tourada
entre o fumo e o
domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o
asfalto e muita gente
e atrás a vida sem
nenhuma infância
revendo tudo isto
algum tempo depois
A tarde morre pelos
dias fora
É muito triste andar
por entre Deus ausente
Mas, ó poeta, administra
a tristeza sabiamente
(O problema da habitação)
Tristeza
(Anphia Coetser:
pintora sul-africana)
Referência:
BELO, Ruy. A mão no arado. In: n: COSTA
E SILVA, Alberto da; BUENO, Alexei (orgs.). Antologia da poesia portuguesa contemporânea: um panorama. Rio de
Janeiro: Lacerda, 1999. p. 266-267.
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