Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Romano de Sant’Anna - O poeta se confessa enfastiado de sua profissão

De tanta poesia, o poeta se diz saturado. Ao produzir, ministrar aulas ou proferir palestras, o espírito do vate chega a um ponto similar ao que, na química, ocasiona a decantação das substâncias colocadas para diluir num líquido, formando um “precipitado” no fundo do recipiente.

Metaforizando: um “precipitado” no mais recôndito da alma. Agora, gracejando com o poema de Romano: Pound, Joyce, Eliot são parte daquilo que o líquido logrou diluir ou compõem a porção que resultou decantada nas profundezas do espírito?

Não é difícil perceber que os três escritores anglófonos estão entre o que de melhor a poesia do século XX experimentou, algo a ser sorvido palavra a palavra, para que se possam desfrutar todos os sentidos que o texto literário é capaz de render. Em lenta e diligente decantação!

J.A.R. – H.C.

Affonso Romano de Sant’Anna
(n. 1937)

O Poeta se confessa enfastiado de sua profissão

1

Por profissão destruo poemas meus e alheios
– porque me pagam
e é o que melhor fago.
Abri-los, desmontá-los,
aos inocentes olhos de alunos
– que muitos se maravilham!
Alguns poderão nunca sentir
– os mais felizes, talvez,
estes, os são-tomés-de-agora-e-sempre.

Com eles me fascino,
pois em sua dureza ingênua
me ensinam
que por mais que tente ou tentem
sobra algo que explicar;
que o homem tem seus limites
diante do que ele fita
e isto é que o salva
ainda que o infelicite:
que seja o homem finito
diante da própria fala
e que ela se iniba face ao objeto
como o impotente
diante do falo.

Aqueles que, explicador, não convenço
deixo meu debitado saldo,
que me ensinam que algo há que nos livra
de sermos Midas perdendo frutos,
Anphion tangendo pedras.
Com eles me persigno
e com eles me comunico.
– pelo incomunicável.

2

Por profissão, cansaço e nojo
quebro os diques, ainda que deles guardião,
deserto meus oásis por muito usá-los,
como operário que se explode com a mina.

Tenho que servir poesia
a horas certas, à la carte,
toalha limpa, entradas, sobremesas;
e depois de tanto bem mal-servi-la, concluo
que poemas são como gente:
as mais virtuosas, as bem nascidas, as bem vestidas
nem sempre são as que mais transmitem vida.

Entre empresário com sua troupe de enganos
e obstetra com fórceps forçando natimortos,
disponho o poema em padiolas
como um cadáver lunar.

E, às vezes, se dá que do perecível
montão de formas – que chamamos poesía,
algo se transfigura e surpreende
num bíblico ressuscitar.

3

Por profissão, ainda,
me farto de literatura:
criticismos irrefutáveis, estruturas demonstráveis,
estratos semânticos, sonoros, metafísicos, sintáticos, inodoros,
Aristóteles – flor de retardo
brotando dos “slums” de Chicago,
argúcia barroquíssima, gestaltes, weltanschauung,
círculos de praga no poema.

Cato ideogramas com mandíbulas
como se cardos tocasse.
Maneirismos sutilíssimos,
artefatos bimembres, quase humanos,
um certo chá das cinco literário
de um certo Sir Eliot,
medievalismos em retalho
de um desmesurado Mister Pound,
palimpsestos recompondo
microcosmos joyceanos.

E eu peço e analisam
(às vezes, não encontram, mas sempre analisam),
eu, que nunca me dei com analuos
sintáticos, sociais, seja o que for;
eu, fruto de intuições, sínteses sonoras
que iludem mais que a ti,
iludem a mim
– árduo leitor.

Los Angeles – 1967

O Poeta
(Richard Piloco: pintor norte-americano)

Referência:

SANT’ANNA, Affonso Romano de. O poeta se confessa enfastiado de sua profissão. In: FÉLIX, Moacyr (Dir.). Poesia viva I. Introdução de Antônio Houaiss. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1968. p. 43-45. (Coleção ‘Poesia Hoje’, v. 18: Série Novos Poetas do Brasil)

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