De tanta poesia, o poeta se diz saturado. Ao produzir, ministrar aulas
ou proferir palestras, o espírito do vate chega a um ponto similar ao que, na
química, ocasiona a decantação das substâncias colocadas para diluir num
líquido, formando um “precipitado” no fundo do recipiente.
Metaforizando: um “precipitado” no mais recôndito da alma. Agora,
gracejando com o poema de Romano: Pound, Joyce, Eliot são parte daquilo que o
líquido logrou diluir ou compõem a porção que resultou decantada nas
profundezas do espírito?
Não é difícil perceber que os três escritores anglófonos estão entre o
que de melhor a poesia do século XX experimentou, algo a ser sorvido palavra a palavra,
para que se possam desfrutar todos os sentidos que o texto literário é capaz de
render. Em lenta e diligente decantação!
J.A.R. – H.C.
Affonso Romano de Sant’Anna
(n. 1937)
O Poeta se confessa enfastiado de sua profissão
1
Por profissão destruo
poemas meus e alheios
– porque me pagam
e é o que melhor
fago.
Abri-los,
desmontá-los,
aos inocentes olhos
de alunos
– que muitos se
maravilham!
Alguns poderão nunca
sentir
– os mais felizes,
talvez,
estes, os são-tomés-de-agora-e-sempre.
Com eles me fascino,
pois em sua dureza
ingênua
me ensinam
que por mais que
tente ou tentem
sobra algo que
explicar;
que o homem tem seus
limites
diante do que ele
fita
e isto é que o salva
ainda que o
infelicite:
que seja o homem
finito
diante da própria
fala
e que ela se iniba
face ao objeto
como o impotente
diante do falo.
Aqueles que,
explicador, não convenço
deixo meu debitado
saldo,
que me ensinam que
algo há que nos livra
de sermos Midas
perdendo frutos,
Anphion tangendo
pedras.
Com eles me persigno
e com eles me
comunico.
– pelo incomunicável.
2
Por profissão, cansaço
e nojo
quebro os diques,
ainda que deles guardião,
deserto meus oásis
por muito usá-los,
como operário que se
explode com a mina.
Tenho que servir poesia
a horas certas, à la
carte,
toalha limpa,
entradas, sobremesas;
e depois de tanto bem
mal-servi-la, concluo
que poemas são como
gente:
as mais virtuosas, as
bem nascidas, as bem vestidas
nem sempre são as que
mais transmitem vida.
Entre empresário com
sua troupe de enganos
e obstetra com
fórceps forçando natimortos,
disponho o poema em
padiolas
como um cadáver
lunar.
E, às vezes, se dá
que do perecível
montão de formas –
que chamamos poesía,
algo se transfigura e
surpreende
num bíblico
ressuscitar.
3
Por profissão, ainda,
me farto de
literatura:
criticismos
irrefutáveis, estruturas demonstráveis,
estratos semânticos,
sonoros, metafísicos, sintáticos, inodoros,
Aristóteles – flor de
retardo
brotando dos “slums”
de Chicago,
argúcia barroquíssima,
gestaltes, weltanschauung,
círculos de praga no
poema.
Cato ideogramas com
mandíbulas
como se cardos
tocasse.
Maneirismos
sutilíssimos,
artefatos bimembres,
quase humanos,
um certo chá das
cinco literário
de um certo Sir
Eliot,
medievalismos em
retalho
de um desmesurado
Mister Pound,
palimpsestos
recompondo
microcosmos
joyceanos.
E eu peço e analisam
(às vezes, não
encontram, mas sempre analisam),
eu, que nunca me dei
com analuos
sintáticos, sociais,
seja o que for;
eu, fruto de intuições,
sínteses sonoras
que iludem mais que a
ti,
iludem a mim
– árduo leitor.
Los Angeles – 1967
O Poeta
(Richard Piloco:
pintor norte-americano)
Referência:
SANT’ANNA, Affonso Romano de. O poeta
se confessa enfastiado de sua profissão. In: FÉLIX, Moacyr (Dir.). Poesia viva I. Introdução de Antônio
Houaiss. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1968. p. 43-45. (Coleção
‘Poesia Hoje’, v. 18: Série Novos Poetas do Brasil)
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