Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 31 de maio de 2014

Norberto Bobbio – Teoria Geral do Direito (Parte III)

(Para ler a Parte II, acesse aqui)
(Continuação da “Teoria da Norma Jurídica”)

V.    As Prescrições Jurídicas (p. 125-157)
Neste capítulo, Bobbio busca distinguir as normas jurídicas de outros tipos de norma, não se restringindo a um estudo puramente formal, como feito apresentado anteriormente, haja vista a amplitude do universo normativo (p. 125-126).
Na definição de critérios de distinção das prescrições jurídicas, começa pelo de conteúdo: (i) é jurídica aquela norma que regula uma relação intersubjetiva, atribuindo um direito e um dever a duas pessoas simultaneamente; (ii) trata-se de uma norma bilateral, e nisto difere da norma moral, que é unilateral; e (iii) por distinguir a norma jurídica da norma moral, este critério não vale para distingui-la da norma social (p. 127).
Quanto ao critério do fim, afirma que: (i) jurídica é aquela norma que regula uma relação intersubjetiva específica, cuja finalidade é a conservação da sociedade, sem o que esta não seria possível; e (ii) todavia, este critério não pode ser considerado válido, porque não é universal, uma vez que a norma muda de sociedade para sociedade, não existindo um método para se fixar de modo unívoco os caracteres que tornam determinada norma uma regra essencial para a conservação da sociedade (p. 128).
No que diz respeito ao critério do sujeito que põe a norma, vale a assertiva de que jurídica é a norma que, independentemente da forma que assuma, do conteúdo que tenha ou do fim a que se proponha, seja posta pelo poder soberano, ou seja, por aquele poder que em uma dada sociedade não é inferior a nenhum outro poder, mas que se encontra em posição de dominar todos os demais (p. 129).
Sob a ótica do critério dos valores ou ideais, muito aceito entre os jusnaturalistas, jurídica é a norma que, além de ser posta pelo poder soberano, fundamenta-se em critérios de justiça, assente, desde logo, que o seu maior problema é a não existência de uma definição única daquilo que seja justo (p. 129-130).
Outro critério é o do destinatário ou da natureza da obrigação, com duas vertentes (Kant e Haesert), a defender que se está frente a uma norma jurídica somente quando a pessoa a quem ela se dirige está convencida de sua obrigatoriedade (p. 130-131).
Bobbio, logo após, tece comentários ao critério da resposta à violação. Afirma-se que a norma prescreve o que deve ser. Se a ação real não corresponde à ação prescrita diz-se que a norma foi violada, sendo qualificada tal violação como ilícito. Se a norma for um imperativo negativo, o ilícito consiste em uma ação, e se a norma for um imperativo positivo, o ilícito consiste numa omissão. No primeiro caso, diz-se que a norma não foi observada e, no segundo, que a norma não foi cumprida, havendo, portanto, duas formas distintas de violação – a inobservância de um imperativo negativo e o incumprimento de um imperativo positivo –, diferença que põe em relevo um critério de distinção entre o sistema científico e o normativo. Em um sistema científico, quando os fatos desmentem uma lei, gera-se a modificação das leis; já num sistema normativo, quando a ação não se adéqua à norma, orientamo-nos em modificar a ação, mantendo-se a norma (p. 131-133).
Bobbio argumenta que, para um ordenamento normativo nunca ser violado, ou bem deve ser perfeitamente racional ou bem as pessoas devem ser completamente passivas, condições impossíveis de se realizar, sendo que a segunda nem mesmo é desejável. Na hipótese da norma moral, caracteriza-se pelo tipo de sanção que provoca, a sanção moral ou interior, autoimposta pelo indivíduo, obrigando-o em consciência e, caso transgredida, gera o remorso e o senso de culpa (p. 134-136).
Afirma o autor que a sanção moral é pouco eficaz porque age, geralmente, sobre aqueles sujeitos que, de per si, já são moralmente elevados, porquanto aqueles que não respeitam a norma moral não sofrem quaisquer constrições anímicas. Por esse motivo, muitas vezes se reforçam as sanções morais com sanções religiosas, por serem externas (p. 137-138).
As sanções sociais, verdadeiro meio de controle social, são sanções externas que nos são impostas pelos membros do grupo social, em resposta à violação de uma norma social, uma norma que torna mais fácil o convívio em sociedade. As normas sociais nascem como costumes e o grupo social responde às suas violações com sanções eficazes, tais como, reprovação, isolamento, expulsão, linchamento etc. (p. 137-138).
A sanção jurídica, por seu turno, é típica de grupos que constituem ordenamentos jurídicos, sendo externa e institucionalizada. A norma jurídica institucionalizada é mais eficaz e regulamentada em todos os aspectos: conhece-se a sanção relacionada a quaisquer tipos de violações, a sua extensão ou medida e as pessoas encarregadas pela sua execução. Trata-se de uma sanção certa, proporcional e imparcial, razão pela qual se diz que a norma jurídica são normas de eficácia reforçada (p. 139-141).
Bobbio assevera que, na esfera do normativo com eficácia reforçada, existem vários níveis, embora mencione apenas dois: a autotutela, na qual o titular do direito de exercer a sanção é o mesmo titular do direito violado, e a heterotutela, na qual os dois titulares são pessoas diferentes. Nada obstante, o autor entende que apenas a heterotutela é capaz de garantir a ordem e a igualdade de tratamento entre as partes (p. 142).
Os não-sancionistas não têm a sanção como um elemento constitutivo do direito, sob vários argumentos, mormente o de que o ordenamento não se baseia no temor da sanção, mas na adesão espontânea à norma, pois uma ordem fundada apenas na força não seria eficaz. Bobbio refuta essa objeção afirmando que a adesão espontânea é necessária, mas não suficiente à manutenção do ordenamento. Admitindo-se que não haja consenso na obediência, persiste, portanto, a distinção entre a adesão livre e a adesão forçada (p.142-145).
Mais adiante, Bobbio enfrenta o tema das normas sem sanção: o fato de estas existirem evidenciaria que a sanção não é o caráter distintivo do direito. O autor rejeita mais essa objeção sustentando que não há dúvida de que as normas sem sanção sejam normas jurídicas, porque quando se fala de sanção não se refere a nenhuma norma singular, mas ao fato de que ordenamento como um todo tem caráter sancionador. A adesão de uma norma ao ordenamento faz referência à sua validade, enquanto a sanção delimita a sua eficácia, motivo pelo qual se afirma que uma norma pode ser válida mesmo sem ser eficaz (p. 146-147).
Ademais, há dois casos típicos de normas sem sanção: (i) normas cuja sanção se mostra inútil – em decorrência do senso de oportunidade e de justiça, resultando em adesão espontânea; e (ii) normas postas para autoridades muito elevadas na hierarquia das normas – de modo a tornar impossível ou pouco eficiente a aplicação de uma sanção, em razão de elas próprias deterem a produção da força coercitiva. Afora tais situações, uma ordem é tanto mais jurídica quanto mais o mecanismo sancionatório funciona (p. 147-150).
Uma terceira objeção que se coloca é a dos ordenamentos sem sanção: se há ordenamentos jurídicos que não preveem sanção, então não é a sanção a determinar a juridicidade de uma norma. A correlação entre direito e sanção somente era válida quando se reconhecia como ordenamento jurídico apenas o estatal; todavia há outros ordenamentos fora do âmbito estatal, nos quais se encontram processos sancionatórios (p. 150-151).
Um dos argumentos dos não-sancionistas, por exemplo, é o de que o direito internacional não deveria ser considerado jurídico, porque não prevê sanções. Na realidade, é uma questão de palavras, dependendo do que se entende por “direito”. Em outros termos: não é verdade que no direito internacional não haja sanções, pois a guerra assume a função sancionatória quando ocorrem violações. Por conseguinte, o direito internacional não deixa de ser um ordenamento jurídico, porquanto apresenta uma sanção regulada. A diferença entre o ordenamento estatal e o internacional ocorre no modo pelo qual são regulados: naquele, por meio da heterotutela; neste, por intermédio da autotutela (p. 152-153).
No último tópico deste capítulo, Bobbio aborda uma quarta objeção, referente às normas em cadeia e ao processo ao infinito. Assevera Thon, pelas palavras do autor, que em todos os ordenamentos não se pode remeter ao infinito a norma sancionadora, pois caso se admita que somente seja jurídica a norma que é sancionada, em escala ascendente todas as normas do ordenamento deveriam sê-lo, daí porque existindo, na instância mais alta, norma não sancionada, disso decorre que a sanção não constitui elemento distintivo do ordenamento jurídico (p. 153-154).
Bobbio rechaça essa objeção, pois se sanciona o tipo que deve ser punido e não a própria norma. Ademais, o fato de que a norma não sancionada seja o vértice do ordenamento é a consequência da inversão da relação força/direito. Enfim, deve-se considerar que a adesão espontânea é fundamental em um ordenamento e essa é a justificação para as normas superiores do sistema: “[...] as normas não-sancionadas representam aquele mínimo de consenso sem o qual nenhum Estado poderia sobreviver” (p. 155-157).
VI.   Classificação das Normas Jurídicas (p. 159-170)
Segundo Bobbio, há muitas distinções possíveis entre as normas jurídicas, entre os quais: (i) conteúdo das normas – normas materiais e processuais ou entre normas de comportamento e de organização; (ii) modo como as normas são estabelecidas – normas consuetudinárias e legislativas; (iii) destinatários – normas primárias e secundárias; (iv) natureza e estrutura da sociedade regulada: normas de direito estatal, canônico, internacional etc. No entanto, o autor apega-se ao critério formal, por se relacionar exclusivamente à estrutura lógica das proposições prescritivas (p. 159-160).
Para desenvolver seu estudo, Bobbio estendeu às proposições normativas algumas distinções referentes às proposições descritivas. A primeira delas é entre proposições universais e proposições singulares: (i) universais: são proposições em que o sujeito representa uma classe composta por vários membros, v.g., “os homens são mortais”; (ii) singulares: são aquelas em o sujeito representa um sujeito singular, v.g., “Sócrates é mortal”. De modo similar, há também normas jurídicas universais e singulares (p. 160).
As proposições prescritivas e, portanto, as normas jurídicas, são constituídas por dois elementos: o sujeito a quem a norma se dirige, ou seja, o destinatário, e o objeto da prescrição, isto é, a ação prescritiva. Em razão de que o destinatário da ação pode se apresentar de modo universal ou singular, distinguem-se quatro tipos de normas: com destinatário universal, com destinatário singular, com ação universal e com ação singular (p. 160-161).
Quanto à doutrina da generalidade e abstração, mostra-se imprecisa, porque não especifica se os dois termos devem ser entendidos como sinônimos ou não, além de ser insuficiente ou falaciosa, uma vez que, ao colocar os precitados requisitos, leva a crer que não existem normas jurídicas individuais e concretas (p. 162).
Caso se admita que em um determinado sistema de normas torna-se necessária a previsão de sua violação, deve-se admitir, do mesmo modo, que ao lado de normas gerais e abstratas, existam normas particulares e concretas. Diz-se então geral, a norma com destinatário universal; abstrata, a norma com ação universal; individual, a norma com destinatário singular; e concreta, a norma com ação singular (p. 162).
Considerando que a palavra norma faz pensar em regulação contínua de uma ação, seria mais correto usá-la para a norma com ação universal, passando a chamar as normas com ação singular, em vez de normas concretas, por ordens. De modo similar, em razão de o comando ser uma função direta de prescrição a um sujeito singular, para executar determinada ação, as normas individuais podem ser chamadas comandos (p. 162-163).
Bobbio observa que generalidade e abstração são características não da norma enquanto tal, mas enquanto dever-ser, ou seja, não a norma jurídica real, mas aquela ideal, justa, inspirada nos princípios de igualdade e certeza. Nesse contexto, a generalidade da norma seria a garantia da igualdade, e a abstração a garantia de sua certeza. Como corolário, o autor afirma que a teoria da generalidade e da abstração são objetivos ideais do ordenamento jurídico, embora de difícil materialização na prática (p. 164-165).
Uma outra distinção tradicional da lógica clássica, que pode ser aplicada às proposições prescritivas, é aquela entre proposições positivas e negativas: (i) uma prescrição afirmativa obriga a se fazer algo, tratando-se de um comando – “todos devem fazer X”; (ii) uma prescrição negativa proíbe de se fazer algo, tratando-se de uma proibição – “ninguém deve fazer X”; (iii) uma prescrição que isenta alguém de fazer alguma coisa, não lhe permitindo fazê-la, é uma permissiva negativa – “nem todos devem fazer X”; e (iv) uma prescrição que isenta alguém de não fazer algo, permitindo-lhe fazê-la, é uma permissiva positiva – “nem todos devem não fazer X” (p. 166).
Do quanto sumariado, resulta que as prescritivas afirmativas e aquelas negativas, ou seja, os comandos e proibições, são contrários; as permissivas afirmativas e aquelas negativas são subcontrários; comandos e permissões negativos, proibições e permissões positivas são contraditórios entre si (p. 168).
Por fim, há a distinção entre norma categórica e hipotética. Enquanto a norma categórica estabelece uma ação que deve ser cumprida, a norma hipotética estabelece que uma ação deve ser cumprida, caso se verifique certa condição. Outra distinção é aquela entre normas instrumentais – em que a ação por elas prescrita é tomada como um meio para se alcançar um objetivo (“se você quiser Y, deve X”) –, e normas finais – em que a ação prescrita tem valor de fim (“se você não quiser Y, deve X”). Caso se combinem as normas instrumentais e finais com as normas positivas e negativas, obtém-se quatro tipos de normas hipotéticas: (i) “se você quiser Y, deve X”; (ii) “se você quiser Y, não deve X; (iii) “se você não quiser Y, deve X”; e (iv) “se você não quiser Y, não deve X” (p. 169-170).

(Para ler a Parte IV, acesse aqui)


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