(Para ler a Parte II, acesse aqui)
(Continuação da “Teoria
da Norma Jurídica”)
V. As
Prescrições Jurídicas (p. 125-157)
Neste
capítulo, Bobbio busca distinguir as normas jurídicas de outros tipos de norma,
não se restringindo a um estudo puramente formal, como feito apresentado
anteriormente, haja vista a amplitude do universo normativo (p. 125-126).
Na
definição de critérios de distinção
das prescrições jurídicas, começa pelo de conteúdo:
(i) é jurídica aquela norma que regula uma relação
intersubjetiva, atribuindo um direito e um dever a duas pessoas
simultaneamente; (ii) trata-se de uma norma bilateral, e nisto difere da norma moral, que é unilateral; e (iii)
por distinguir a norma jurídica da norma moral, este critério não vale para
distingui-la da norma social (p. 127).
Quanto
ao critério do fim, afirma que: (i)
jurídica é aquela norma que regula uma relação
intersubjetiva específica, cuja finalidade é a conservação da sociedade, sem o que esta não seria possível; e (ii)
todavia, este critério não pode ser considerado válido, porque não é universal,
uma vez que a norma muda de sociedade para sociedade, não existindo um método
para se fixar de modo unívoco os caracteres que tornam determinada norma uma
regra essencial para a conservação da sociedade (p. 128).
No
que diz respeito ao critério do sujeito
que põe a norma, vale a assertiva de que jurídica é a norma que,
independentemente da forma que assuma, do conteúdo que tenha ou do fim a que se
proponha, seja posta pelo poder soberano,
ou seja, por aquele poder que em uma dada sociedade não é inferior a nenhum
outro poder, mas que se encontra em posição de dominar todos os demais (p.
129).
Sob
a ótica do critério dos valores ou
ideais, muito aceito entre os jusnaturalistas, jurídica é a norma que, além
de ser posta pelo poder soberano, fundamenta-se em critérios de justiça, assente, desde logo, que o seu maior problema
é a não existência de uma definição única daquilo que seja justo (p. 129-130).
Outro
critério é o do destinatário ou da natureza da obrigação, com duas
vertentes (Kant e Haesert), a defender que se está frente a uma norma jurídica
somente quando a pessoa a quem ela se dirige está convencida de sua
obrigatoriedade (p. 130-131).
Bobbio,
logo após, tece comentários ao critério da resposta
à violação. Afirma-se que a norma prescreve o que deve ser. Se a ação real
não corresponde à ação prescrita diz-se que a norma foi violada, sendo
qualificada tal violação como ilícito. Se a norma for um imperativo negativo, o
ilícito consiste em uma ação, e se a norma for um imperativo positivo, o
ilícito consiste numa omissão. No primeiro caso, diz-se que a norma não foi
observada e, no segundo, que a norma não foi cumprida, havendo, portanto, duas
formas distintas de violação – a inobservância de um imperativo negativo e o
incumprimento de um imperativo positivo –, diferença que põe em relevo um
critério de distinção entre o sistema científico e o normativo. Em um sistema
científico, quando os fatos desmentem uma lei, gera-se a modificação das leis;
já num sistema normativo, quando a ação não se adéqua à norma, orientamo-nos em
modificar a ação, mantendo-se a norma (p. 131-133).
Bobbio
argumenta que, para um ordenamento normativo nunca ser violado, ou bem deve ser
perfeitamente racional ou bem as pessoas devem ser completamente passivas,
condições impossíveis de se realizar, sendo que a segunda nem mesmo é
desejável. Na hipótese da norma moral,
caracteriza-se pelo tipo de sanção que provoca, a sanção moral ou interior,
autoimposta pelo indivíduo, obrigando-o em consciência e, caso transgredida,
gera o remorso e o senso de culpa (p. 134-136).
Afirma
o autor que a sanção moral é pouco eficaz porque age, geralmente, sobre aqueles
sujeitos que, de per si, já são
moralmente elevados, porquanto aqueles que não respeitam a norma moral não
sofrem quaisquer constrições anímicas. Por esse motivo, muitas vezes se
reforçam as sanções morais com sanções religiosas, por serem externas (p.
137-138).
As
sanções sociais, verdadeiro meio de
controle social, são sanções externas que nos são impostas pelos membros do
grupo social, em resposta à violação de uma norma social, uma norma que torna
mais fácil o convívio em sociedade. As normas sociais nascem como costumes e o
grupo social responde às suas violações com sanções eficazes, tais como,
reprovação, isolamento, expulsão, linchamento etc. (p. 137-138).
A
sanção jurídica, por seu turno, é
típica de grupos que constituem ordenamentos jurídicos, sendo externa e
institucionalizada. A norma jurídica institucionalizada é mais eficaz e
regulamentada em todos os aspectos: conhece-se a sanção relacionada a quaisquer
tipos de violações, a sua extensão ou medida e as pessoas encarregadas pela sua
execução. Trata-se de uma sanção certa, proporcional e imparcial, razão pela
qual se diz que a norma jurídica são normas de eficácia reforçada (p. 139-141).
Bobbio
assevera que, na esfera do normativo com eficácia reforçada, existem vários
níveis, embora mencione apenas dois: a autotutela,
na qual o titular do direito de exercer a sanção é o mesmo titular do direito
violado, e a heterotutela, na qual
os dois titulares são pessoas diferentes. Nada obstante, o autor entende que
apenas a heterotutela é capaz de garantir a ordem e a igualdade de tratamento
entre as partes (p. 142).
Os
não-sancionistas não têm a sanção
como um elemento constitutivo do direito, sob vários argumentos, mormente o de
que o ordenamento não se baseia no temor da sanção, mas na adesão espontânea à norma, pois uma ordem fundada apenas na força
não seria eficaz. Bobbio refuta essa objeção afirmando que a adesão espontânea
é necessária, mas não suficiente à manutenção do ordenamento. Admitindo-se que
não haja consenso na obediência, persiste, portanto, a distinção entre a adesão livre e a adesão forçada (p.142-145).
Mais
adiante, Bobbio enfrenta o tema das normas
sem sanção: o fato de estas existirem evidenciaria que a sanção não é o
caráter distintivo do direito. O autor rejeita mais essa objeção sustentando
que não há dúvida de que as normas sem sanção sejam normas jurídicas, porque
quando se fala de sanção não se refere a nenhuma norma singular, mas ao fato de
que ordenamento como um todo tem caráter sancionador. A adesão de uma norma ao
ordenamento faz referência à sua validade, enquanto a sanção delimita a sua
eficácia, motivo pelo qual se afirma que uma norma pode ser válida mesmo sem
ser eficaz (p. 146-147).
Ademais,
há dois casos típicos de normas sem sanção: (i) normas cuja sanção se mostra
inútil – em decorrência do senso de oportunidade e de justiça, resultando em
adesão espontânea; e (ii) normas postas para autoridades muito elevadas na
hierarquia das normas – de modo a tornar impossível ou pouco eficiente a
aplicação de uma sanção, em razão de elas próprias deterem a produção da força
coercitiva. Afora tais situações, uma ordem é tanto mais jurídica quanto mais o
mecanismo sancionatório funciona (p. 147-150).
Uma
terceira objeção que se coloca é a dos ordenamentos
sem sanção: se há ordenamentos jurídicos que não preveem sanção, então não
é a sanção a determinar a juridicidade de uma norma. A correlação entre direito
e sanção somente era válida quando se reconhecia como ordenamento jurídico
apenas o estatal; todavia há outros ordenamentos fora do âmbito estatal, nos
quais se encontram processos sancionatórios (p. 150-151).
Um
dos argumentos dos não-sancionistas, por exemplo, é o de que o direito
internacional não deveria ser considerado jurídico, porque não prevê sanções.
Na realidade, é uma questão de palavras, dependendo do que se entende por
“direito”. Em outros termos: não é verdade que no direito internacional não
haja sanções, pois a guerra assume a função sancionatória quando ocorrem
violações. Por conseguinte, o direito internacional não deixa de ser um
ordenamento jurídico, porquanto apresenta uma sanção regulada. A diferença
entre o ordenamento estatal e o internacional ocorre no modo pelo qual são regulados:
naquele, por meio da heterotutela; neste, por intermédio da autotutela (p.
152-153).
No
último tópico deste capítulo, Bobbio aborda uma quarta objeção, referente às
normas em cadeia e ao processo ao infinito. Assevera Thon, pelas palavras do
autor, que em todos os ordenamentos não se pode remeter ao infinito a norma
sancionadora, pois caso se admita que somente seja jurídica a norma que é
sancionada, em escala ascendente todas as normas do ordenamento deveriam sê-lo,
daí porque existindo, na instância mais alta, norma não sancionada, disso
decorre que a sanção não constitui elemento distintivo do ordenamento jurídico
(p. 153-154).
Bobbio
rechaça essa objeção, pois se sanciona o tipo que deve ser punido e não a
própria norma. Ademais, o fato de que a norma não sancionada seja o vértice do
ordenamento é a consequência da inversão da relação força/direito. Enfim,
deve-se considerar que a adesão espontânea é fundamental em um ordenamento e
essa é a justificação para as normas superiores do sistema: “[...] as normas
não-sancionadas representam aquele mínimo de consenso sem o qual nenhum Estado
poderia sobreviver” (p. 155-157).
VI. Classificação
das Normas Jurídicas (p. 159-170)
Segundo
Bobbio, há muitas distinções possíveis entre as normas jurídicas, entre os quais:
(i) conteúdo das normas – normas materiais e processuais ou entre normas de
comportamento e de organização; (ii) modo como as normas são estabelecidas –
normas consuetudinárias e legislativas; (iii) destinatários – normas primárias
e secundárias; (iv) natureza e estrutura da sociedade regulada: normas de
direito estatal, canônico, internacional etc. No entanto, o autor apega-se ao critério formal, por se relacionar
exclusivamente à estrutura lógica
das proposições prescritivas (p. 159-160).
Para
desenvolver seu estudo, Bobbio estendeu às proposições normativas algumas
distinções referentes às proposições descritivas. A primeira delas é entre
proposições universais e proposições singulares: (i) universais: são
proposições em que o sujeito representa uma classe composta por vários membros,
v.g., “os homens são mortais”; (ii)
singulares: são aquelas em o sujeito representa um sujeito singular, v.g., “Sócrates é mortal”. De modo
similar, há também normas jurídicas universais e singulares (p. 160).
As
proposições prescritivas e, portanto, as normas jurídicas, são constituídas por
dois elementos: o sujeito a quem a norma se dirige, ou seja, o destinatário, e
o objeto da prescrição, isto é, a ação prescritiva. Em razão de que o
destinatário da ação pode se apresentar de modo universal ou singular,
distinguem-se quatro tipos de normas: com destinatário universal, com
destinatário singular, com ação universal e com ação singular (p. 160-161).
Quanto
à doutrina da generalidade e abstração,
mostra-se imprecisa, porque não especifica se os dois termos devem ser
entendidos como sinônimos ou não, além de ser insuficiente ou falaciosa, uma
vez que, ao colocar os precitados requisitos, leva a crer que não existem
normas jurídicas individuais e concretas (p. 162).
Caso
se admita que em um determinado sistema de normas torna-se necessária a
previsão de sua violação, deve-se admitir, do mesmo modo, que ao lado de normas
gerais e abstratas, existam normas particulares e concretas. Diz-se então
geral, a norma com destinatário universal; abstrata, a norma com ação
universal; individual, a norma com destinatário singular; e concreta, a norma
com ação singular (p. 162).
Considerando
que a palavra norma faz pensar em
regulação contínua de uma ação, seria mais correto usá-la para a norma com ação
universal, passando a chamar as normas com ação singular, em vez de normas
concretas, por ordens. De modo
similar, em razão de o comando ser uma função direta de prescrição a um sujeito
singular, para executar determinada ação, as normas individuais podem ser
chamadas comandos (p. 162-163).
Bobbio
observa que generalidade e abstração são características não da norma enquanto
tal, mas enquanto dever-ser, ou seja, não a norma jurídica real, mas aquela
ideal, justa, inspirada nos princípios de igualdade
e certeza. Nesse contexto, a
generalidade da norma seria a garantia da igualdade, e a abstração a garantia
de sua certeza. Como corolário, o autor afirma que a teoria da generalidade e
da abstração são objetivos ideais do ordenamento jurídico, embora de difícil
materialização na prática (p. 164-165).
Uma
outra distinção tradicional da lógica clássica, que pode ser aplicada às
proposições prescritivas, é aquela entre proposições
positivas e negativas: (i) uma prescrição
afirmativa obriga a se fazer algo, tratando-se de um comando – “todos devem
fazer X”; (ii) uma prescrição negativa
proíbe de se fazer algo, tratando-se de uma proibição – “ninguém deve fazer X”;
(iii) uma prescrição que isenta alguém de fazer alguma coisa, não lhe
permitindo fazê-la, é uma permissiva
negativa – “nem todos devem fazer X”; e (iv) uma prescrição que isenta
alguém de não fazer algo, permitindo-lhe fazê-la, é uma permissiva positiva – “nem todos devem não fazer X” (p. 166).
Do
quanto sumariado, resulta que as prescritivas afirmativas e aquelas negativas,
ou seja, os comandos e proibições, são contrários;
as permissivas afirmativas e aquelas negativas são subcontrários; comandos e permissões negativos, proibições e
permissões positivas são contraditórios
entre si (p. 168).
Por
fim, há a distinção entre norma categórica e hipotética. Enquanto a norma categórica estabelece uma ação
que deve ser cumprida, a norma
hipotética estabelece que uma ação deve ser cumprida, caso se verifique
certa condição. Outra distinção é aquela entre normas instrumentais – em que a
ação por elas prescrita é tomada como um meio para se alcançar um objetivo (“se
você quiser Y, deve X”) –, e normas finais – em que a ação prescrita tem valor
de fim (“se você não quiser Y, deve X”). Caso se combinem as normas
instrumentais e finais com as normas positivas e negativas, obtém-se quatro
tipos de normas hipotéticas: (i) “se você quiser Y, deve X”; (ii) “se você
quiser Y, não deve X; (iii) “se você não quiser Y, deve X”; e (iv) “se você não
quiser Y, não deve X” (p. 169-170).
Muito bom!
ResponderExcluirMuito bom!
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