(Para ler a nota de aviso, acesse aqui)
BOBBIO,
Norberto. Teoria geral do direito.
Tradução de: Denise Agostinetti. São Paulo: Martins Fontes, 2007 (Justiça e
Direito).
Norberto
Bobbio - antes de tudo, um mestre da filosofia política europeia - foi
professor das Universidades de Siena e Pádua, tendo passado, a partir de 1948,
a catedrático da Universidade de Turim. Nasceu em 18/10/1909, em Turim (Itália)
e faleceu na mesma cidade, em 9/1/2004. Licenciado em Direito e Filosofia,
dedicou-se à carreira universitária, com docência no âmbito da Filosofia do
Direito e da Filosofia Política. Tais matérias ocuparam grande parte de sua
extensa bibliografia, que sempre atentou para os problemas da vida cultural e
ideológica de seu tempo.
A
temática de seus estudos é muito ampla, sendo a maior parte de suas obras
compêndios de ensaios ou de apontamentos universitários, abarcando assuntos
distintos, como a filosofia política, a sociologia jurídica, a teoria geral do
direito, a filosofia analítica, o direito internacional, a teoria da justiça,
os direitos humanos e a história da filosofia.
Dentro
da variada gama de estudos jurídicos, destaca Bobbio sua predileção pelos
problemas da teoria geral do direito, aficção procedente da leitura de
Carnelutti. É decisiva, contudo, a influência kelseniana, de acordo com a qual
desenvolve uma teoria normativista e formalista. A tal matéria dedicou grande
quantidade de ensaios, destacando-se os apontamentos correspondentes a dois
cursos acadêmicos, publicados inicialmente com as denominações de Teoria da Norma Jurídica, em 1958, e de
Teoria do Ordenamento Jurídico, em
1960. Essas duas publicações, por sua conexão e continuidade, seriam compiladas
posteriormente em um só volume, com a denominação de Teoria Geral do Direito, objeto desta resenha.
PREFÁCIO
(p. IX-X)
Bobbio
observa que, acatando sugestões de seu editor e de críticos, resolveu republicar,
em um só volume e sob o título em apreço, dois cursos que houvera ministrado na
Universidade de Turim, nos anos acadêmicos de 1957-58 e 1959-60, enquanto
professor de filosofia do direito, quais sejam, Teoria da Norma Jurídica e Teoria
do Ordenamento Jurídico. Tratam eles da síntese dos estudos do autor,
relativa à teoria do direito, durante os quase vinte anos que vão do primeiro
pó-guerra até aproximadamente 1968 (p. IX-X).
Bobbio
reconhece a inspiração nitidamente kelseniana de seus textos, ainda que defira
tributos aos pensadores italianos da doutrina da instituição, segundo os quais
a definição do direito não há de ser buscada, como acontecia tradicionalmente,
nos caracteres distintivos da norma, mas nos do ordenamento (p. XI).
Por
fim, como a antecipar possíveis vislumbres de pacificação entre aspectos
teóricos muitas vezes antitéticos, o autor observa que adotará “[...] uma
tendência constante a evitar teses extremistas, que exibem originalidade
barata, e as reducionistas, que se omitem de enxergar todos os lados da
questão” (p. XII) [3].
PRIMEIRA
PARTE − TEORIA DA NORMA JURÍDICA (p. 1-170)
I. O
Direito como Regra de Conduta (p. 3-24)
Como
dispõe Bobbio, o direito pode ser considerado como um conjunto de normas ou de
regras de conduta. Por conseguinte, “[...]
a experiência jurídica é uma experiência normativa” (itálico do autor) (p.
3).
As
normas jurídicas são apenas parte de
todas as normas ou regras de conduta. Há também norma de natureza religiosa,
moral, social etc. Sendo assim, regras são “[...] proposições com a finalidade
de influenciar o comportamento dos indivíduos e dos grupos, de dirigir a ação
dos indivíduos e dos grupos mais para certos objetivos que para outros” (p. 6).
Ao
regularem relações, os diversos tipos de regras configuram distintos planos de
atuação: (i) as regras morais, no
âmbito da relação do homem consigo mesmo; (ii) os preceitos religiosos, na relação do homem com as divindades; e
(iii) as normas jurídicas, quando as
relações dizem respeito às interações humanos (p. 6-7).
Segundo
Bobbio, há, pelo menos, duas teorias jurídicas diferentes da teoria jurídica
normativa: a teoria do direito como
instituição e teoria do direito como
relação. Quanto à primeira, Santi Romano afirma que o conceito de direito
deve conter os seguintes elementos essenciais (p. 8-9): (a) deve reconduzir ao
conceito de sociedade (ubi societas ibi
ius / ubi ius ibi societas); (b) deve conter a ideia de ordem social; e (c)
antes de ser norma, deve ser organização. Essa sociedade ordenada e organizada é
o que Santi Romano chama instituição: para que ela exista, o elemento
fundamental é a organização. Bobbio replica que, apesar de se poder dizer que o
direito pressupõe uma sociedade, não é verdade que toda sociedade existente tem
natureza jurídica: não se pode dizer que ubi
societas ibi ius (p. 10).
O
autor tece algumas outras críticas à teoria
institucionalista: (i) “[...] não há nenhuma razão que induza a excluir que
a teoria normativa também possa ser compatível com o pluralismo jurídico”, haja
vista que não se há de restringir a palavra norma apenas às normas do Estado (p. 14); e (ii) a afirmação de que
antes de ser norma o direito é
instituição é discutível, pois não há organização sem normas, escritas ou
não-escritas (p. 15).
Bobbio
tece elogios à teoria da instituição, no sentido de que graças a ela a teoria
geral do direito evoluiu de teoria das normas à teoria do ordenamento, assumindo
uma nova ordem de problemas, ligados à formação, coordenação e integração de um
sistema normativo (p. 16).
Adentrando
a seara da teoria da relação, particularmente
no da teoria da relação intersubjetiva,
afirma-se que a relação entre dois indivíduos é uma expressão jurídica, uma vez
assente na ideia, originária do direito natural, de Estado como um contrato
entre os homens. Segundo os institucionalistas, todavia, uma simples relação
entre dois sujeitos não pode constituir direito, porquanto é “[...] necessário
que esta relação esteja inserida numa série mais ampla e complexa de relações
constituintes, isto é, a instituição (p. 17).
A
teoria kantiana do direito, por sua
vez, entende que uma relação jurídica ocorre por acordo entre vontades livres
de indivíduos. Kant classifica as relações humanas em quatro modalidades: (i)
um sujeito tem direitos e deveres e outro tem apenas direitos e não deveres
(relação com as divindades); (2) um sujeito tem direitos e deveres e outro tem
apenas deveres e não direitos (relação de escravidão); (3) um sujeito tem
direitos e deveres e outro não tem nem direito nem deveres (relação com animais);
e (4) um sujeito tem direitos e deveres e outro também tem direitos e deveres,
o que, entre as modalidades mencionadas, retrata a lídima relação jurídica
entre os homens (p. 18).
Bobbio
cita, ainda, Del Vecchio, para quem a mesma ação pode ser avaliada sob uma
perspectiva moral − em cotejo com a mesma pessoa que executa a ação − ou sob
uma perspectiva jurídica, vale dizer, em relação às pessoas a quem a ação é
dirigida, o que permite delimitar o direito “[...] como um conjunto de relações
entre sujeitos, de modo que se um tem o poder de realizar certa ação, o outro
tem o dever de não impedi-la” (p. 18-19).
Depois
de sumariar as ideias de Alessandro Levi, em sua Teoria generale del diritto,
Bobbio as critica por pretender reduzir o direito a uma mera relação, e não a
uma relação regulada. Ao fim, o autor afirma que a teoria da relação jurídica acaba por desembocar, tal como a teoria da instituição, na teoria normativa (p. 21).
Essas
três teorias, segundo Bobbio, não se excluem reciprocamente, senão se integram
utilmente uma com a outra. Sintetizando os três aspectos acentuados em cada uma
delas − a organização, a relação e a norma −, o autor sobreleva a importância
desta última: “A intersubjetividade e a organização são condições necessárias para a formação de uma ordem
jurídica; o aspecto normativo é condição necessária
e suficiente” (itálico do autor) (p.
24).
II. Justiça,
Validade e Eficácia (p. 25-48)
Diante
de uma norma jurídica, pode ser colocada uma tríplice ordem de problemas: 1) se
ela é justa ou injusta; 2) se ela é válida
ou inválida; 3) se ela é eficaz ou ineficaz. “Trata-se dos três problemas distintos da justiça, da validade e da eficácia de
uma norma jurídica” (itálicos do autor) (p. 25). Esses três critérios de
valoração da norma originam três problemas distintos, independentes entre si,
no sentido de que a justiça não depende nem da validade nem da eficácia, e a
eficácia não depende nem da justiça nem da validade (p. 28).
O
critério de justiça, a delimitar o problema deontológico do direito, procura avaliar a aptidão da norma para
realizar os valores históricos que inspiram o ordenamento jurídico. O critério
de validade, a configurar o problema ontológico
do direito, busca apurar a existência da norma, independentemente de ser
considerada justa ou injusta. Finalmente, o critério de eficácia, ínsito ao
problema fenomenológico do direito,
diz respeito à observância da norma pelos seus destinatários e, em caso de
violação, a imposição de meios coercitivos pela autoridade que a evocou (p.
26-28).
Sob
tal esquema de Bobbio, surgem seis proposições que derivam das formulações
anteriores (p. 28-31): (i) uma norma pode ser válida sem ser eficaz; (ii) uma
norma pode ser válida sem ser justa; (iii) uma norma pode ser eficaz sem ser
válida; (iv) uma norma pode ser eficaz sem ser justa; (v) uma norma pode ser
justa sem ser válida; e (vi) uma norma pode ser justa sem ser eficaz.
Bobbio
exercita ainda outra caracterização dessas três dimensões do direito: (i) a
filosofia do direito, sob o enfoque da justiça, ao investigar a correspondência
da norma com os valores sociais, passaria a delimitar o que comumente se
denomina teoria da justiça; (ii) a
filosofia do direito, sob o enfoque da validade, ao investigar as
características específicas do ordenamento, constituiria a chamada teoria geral do direito; e (iii) a
filosofia do direito, sob o enfoque da eficácia, ao investigar o comportamento
efetivo dos homens em sociedade, sob a égide da normatividade jurídica,
constituiria a denominada sociologia
jurídica (p. 31-33).
Ignorar
qualquer destes três níveis da normatividade jurídica − validade, eficácia e
justiça −, como esquecer quaisquer das três dimensões do mundo jurídico −
norma, fato social e valor −, significa um exaurimento do direito, a recaída
nas posturas unilaterais do formalismo, do sociologismo ou do jusnaturalismo
radical ou exacerbado. Como diz Bobbio, esse é o “[...] erro do ‘reducionismo’,
que leva a eliminar ou no mínimo a ofuscar um dos três elementos constitutivos
da experiência jurídica e, portanto, a mutila” (p. 34).
As
manifestações históricas e atuais dessa unilateralidade reducionista abarcariam
assim, segundo Bobbio, três atitudes diferentes: (i) redução da validade à
justiça; (ii) redução da justiça à validade; e (ii) redução da validade à
eficácia (p. 34).
Bobbio,
atentando para o trinômio justiça, validade e eficácia, passa a empreender
minudente análise acerca das três vertentes que possuem como objeto
preferencial de sua análise cada uma dessas dimensões do direito, a saber, o direito natural (jusnaturalismo), o positivismo jurídico (juspositivismo) e
o realismo jurídico,
respectivamente.
No
que pertine ao direito natural, o autor objeta “[...] que o direito corresponda
à justiça é uma exigência ou, se preferirmos, um ideal a ser alcançado que
ninguém pode desconhecer, mas não é uma realidade de fato (p. 35-56)”. Distinções
entre o justo e o injusto não são universais, como se verdade matemática
demonstrável fossem.
Com
respeito ao positivismo, como exposto, equivoca-se ao reduzir a justiça à
questão de validade das normas, sob argumentos diversos, como, por exemplo, o
de Kelsen − pela subjetividade e irracionalidade subjacentes ao conceito de
justiça (p. 39).
Hobbes
diz que não há um justo por natureza, mas por convenção. Não existe critério do
justo e do injusto fora da lei positiva, isto é, fora do comando do soberano.
Não é possível, segundo ele, distinguir o justo do injusto no estado de
natureza: justo é aquilo que é comandado, apenas pelo fato de ser comandado, ou
de outro modo, “[...] é injusto o que é proibido, apenas pelo fato de ser
proibido” (p. 39).
Bobbio
expõe, em seguida, os aportes teóricos do realismo jurídico: no transcurso do
século XX, muitos foram os pensadores do direito que buscaram na realidade
social os elementos balizadores para as suas formulações teóricas, pois ali é a
paragem “[...] onde o direito se forma e se transforma, nas ações dos homens
que fazem e desfazem com seus comportamentos as regras de conduta que os
governam”. Tal abordagem, segundo o autor, vai de encontro ao jusnaturalismo e
ao positivismo, pondo em relevo mais a eficácia que a justiça ou a validade (p.
42). Para os realistas, o que importa é o direito aplicado em sua concretude −
em contraste ao direito imposto −, pois é o “[...] único objeto possível de
pesquisa por parte do jurista que não queira se entreter com fantasmas vazios”
(p. 43).
Logo
após, Bobbio apresenta um breve histórico dos contributos das correntes
sociológicas do direito, sumariadas em suas três principais vertentes: (i) escola histórica do direito (Carl Von
Savigny); (ii) concepção sociológica do
direito (Kantorowicz, François Gény, Eugen Erlich); e (iii) concepção realista do direito (Oliver W.
Holmes, Roscoe Pound, Jerome Frank). Ao final, afirma que essas correntes
tiveram o poder de impedir a “[...] cristalização da ciência jurídica em uma
dogmática sem impulso inovador” (p. 46).
De
resto, a principal crítica que se faz ao realismo jurídico, segundo Bobbio,
resumiu-se à “[...] revisão das fontes do
direito, vale dizer, numa crítica ao monopólio da lei e na reavaliação de
duas outras fontes diversas da lei, o direito
consuetudinário e o direito
judiciário (o juiz legislador)” (itálico do autor) (p. 47).
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