Mário de Andrade
(1893-1945)
Agora exploraremos um longo poema do autor de “Pauliceia Desvairada”,
Mário de Andrade, contido na seção de “Outubro” do livro de poesias “A Costela do
Grão Cão”, subtitulado “Os Gatos”, e recolhido à primeira referência que
apresentamos ao final desta postagem.
Consignamos que se trata, notoriamente, de um poema que, em sua primeira
parte, vale-se de imagens coletivas dos gatos para associá-las, pelo emprego de
metáforas, ao exército nazista, tal como se depreende pelo descritivo a evocar o
listrado preto e branco do emblema daquelas forças, a “boca hitlerista” ou o gentílico “tedesco”,
algo próximo a “alemão”.
Com o avançar dos versos e a entrada em sua segunda parte, a figura do gato, sobranceiramente feminina, se singulariza, passando a composição a carregar-se com um mais do que
pronunciado componente erótico.
Para quem interessar possa, este poema, como muitos outros de Mário de
Andrade, foi objeto de análise por conta do falecido literato mineiro João
Luiz Lafetá (1946-1996), razão por que oferecemos, entre as referências, o
indicativo da obra que a contém.
J.A.R. – H.C.
II - Os Gatos
(a)
(14-X-33)
Que beijos que eu
dava...
Não tigre, vossa boca
é mesmo que um gato
Imitando tigre.
Boca rajada, boca
rasgada de listas,
De preto, de branco,
Boca hitlerista,
Vossa boca é mesmo
que um gato.
Nas paredes da noite
estão os gatos.
Têm garras, têm
enormes perigos
De exércitos
disfarçados,
Milhares de gatos
escondidos por trás da noite incerta.
Irão estourar por aí
de repente,
Já estão com mil
rabos além de São Paulo,
Nem sei mais se são
as fábricas que miam
Na tarde desesperada.
Penso que vai chover
sobre os amores dos gatos.
Fugirão?... e só eu
no deserto das ruas,
Ôh incendiária dos
meus aléns sonoros,
Irei buscando a vossa
boca,
Vossa boca
hitlerista,
Vossa boca mais
nítida que o amor,
Ai, que beijos que eu
dava...
Guardados na chuva...
Boiando nas enxurradas
Nosso corpo de
amor...
Que beijos, que
beijos que eu dou!
Vamos enrolados pelas
enxurradas
Em que boiam corpos,
em que boiam os mortos,
Em que vão putrefatos
milhares de gatos...
Das casas cai
mentira,
Nós vamos com as
enxurradas,
Com a perfeita
inocência dos fenômenos da terra,
Voluptuosamente
mortos,
Os sem ciência mais
nenhuma de que a vida
Está horrenda,
querendo ser, erguendo os rabos
Por trás da noite, em
companhia dos milhões de gatos verdes.
(b)
(15-X-33)
Me pus amando os
gatos loucamente,
Ôh China!
Mas agora porém não
são gatos tedescos,
Tudo está calmo em
plena liberdade,
Se foram as volúpias
e as perversões tão azedas,
Eu sou cravo, tu és
rosa,
Tu és minha rosa
sincera,
És odorante, és
brasileira à vontade,
Feito um prazer que
chega todo dia.
Mas eu te cresço em
meu desejo,
Ai, que vivo arrasado
de notícias!
Murmurando com medo
ao teu ouvido:
Ôh China! ôh minha China!...
Tu te gastas sob o
meu peso bom,
Teus lábios estão
alastrados na abertura do reconhecimento,
Teus olhos me olham,
me procuram todo...
Mas eu insisto em meu
castigo, ôh China.
Como um gato chinês
criado através de séculos de posse e de aproveitamentos,
Para meu gozo só, pra
meu enfeite só de mim,
Para mim, pra mim, tu
foste feita, ôh China!
Estou te saboreando,
és gato china que apanhei vagamundo na rua,
Ôh China! ôh minha
triste China,
Estarei pesando, te
fazendo pesar sem motivo,
Estou... estava, ôh
minha triste sina,
Até que fui guardar
nos teus cabelos perdidos
Lágrima que não pude
sem chorar.
Referências:
ANDRADE, Mário. Os gatos. In:
__________. Poesias completas. São
Paulo: Círculo do Livro, 1976. p. 292-294.
LAFETÁ, João Luiz. Figuração da intimidade: imagens na poesia de Mário de Andrade. São
Paulo: Martins Fontes, 1986. p. 65-94.
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