Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 6 de maio de 2014

Mário de Andrade – Os Gatos

Mário de Andrade
(1893-1945)

Agora exploraremos um longo poema do autor de “Pauliceia Desvairada”, Mário de Andrade, contido na seção de “Outubro do livro de poesias “A Costela do Grão Cão”, subtitulado “Os Gatos”, e recolhido à primeira referência que apresentamos ao final desta postagem.

Consignamos que se trata, notoriamente, de um poema que, em sua primeira parte, vale-se de imagens coletivas dos gatos para associá-las, pelo emprego de metáforas, ao exército nazista, tal como se depreende pelo descritivo a evocar o listrado preto e branco do emblema daquelas forças, a “boca hitlerista” ou o gentílico “tedesco”, algo próximo a “alemão”.

Com o avançar dos versos e a entrada em sua segunda parte, a figura do gato, sobranceiramente feminina, se singulariza, passando a composição a carregar-se com um mais do que pronunciado componente erótico.

Para quem interessar possa, este poema, como muitos outros de Mário de Andrade, foi objeto de análise por conta do falecido literato mineiro João Luiz Lafetá (1946-1996), razão por que oferecemos, entre as referências, o indicativo da obra que a contém.

J.A.R. – H.C. 

II - Os Gatos

(a)

(14-X-33)

Que beijos que eu dava...
Não tigre, vossa boca é mesmo que um gato
Imitando tigre.

Boca rajada, boca rasgada de listas,
De preto, de branco,
Boca hitlerista,
Vossa boca é mesmo que um gato.

Nas paredes da noite estão os gatos.
Têm garras, têm enormes perigos
De exércitos disfarçados,
Milhares de gatos escondidos por trás da noite incerta.
Irão estourar por aí de repente,
Já estão com mil rabos além de São Paulo,
Nem sei mais se são as fábricas que miam
Na tarde desesperada.

Penso que vai chover sobre os amores dos gatos.
Fugirão?... e só eu no deserto das ruas,
Ôh incendiária dos meus aléns sonoros,
Irei buscando a vossa boca,
Vossa boca hitlerista,
Vossa boca mais nítida que o amor,
Ai, que beijos que eu dava...
Guardados na chuva...
Boiando nas enxurradas
Nosso corpo de amor...
Que beijos, que beijos que eu dou!

Vamos enrolados pelas enxurradas
Em que boiam corpos, em que boiam os mortos,
Em que vão putrefatos milhares de gatos...
Das casas cai mentira,
Nós vamos com as enxurradas,
Com a perfeita inocência dos fenômenos da terra,
Voluptuosamente mortos,
Os sem ciência mais nenhuma de que a vida
Está horrenda, querendo ser, erguendo os rabos
Por trás da noite, em companhia dos milhões de gatos verdes.
   

(b)

(15-X-33)

Me pus amando os gatos loucamente,
Ôh China!
Mas agora porém não são gatos tedescos,
Tudo está calmo em plena liberdade,
Se foram as volúpias e as perversões tão azedas,
Eu sou cravo, tu és rosa,
Tu és minha rosa sincera,
És odorante, és brasileira à vontade,
Feito um prazer que chega todo dia.

Mas eu te cresço em meu desejo,
Ai, que vivo arrasado de notícias!
Murmurando com medo ao teu ouvido:
Ôh China! ôh minha China!...

Tu te gastas sob o meu peso bom,
Teus lábios estão alastrados na abertura do reconhecimento,
Teus olhos me olham, me procuram todo...

Mas eu insisto em meu castigo, ôh China.

Como um gato chinês criado através de séculos de posse e de aproveitamentos,
Para meu gozo só, pra meu enfeite só de mim,
Para mim, pra mim, tu foste feita, ôh China!
Estou te saboreando, és gato china que apanhei vagamundo na rua,
Ôh China! ôh minha triste China,
Estarei pesando, te fazendo pesar sem motivo,
Estou... estava, ôh minha triste sina,
Até que fui guardar nos teus cabelos perdidos
Lágrima que não pude sem chorar.

Referências:

ANDRADE, Mário. Os gatos. In: __________. Poesias completas. São Paulo: Círculo do Livro, 1976. p. 292-294.

LAFETÁ, João Luiz. Figuração da intimidade: imagens na poesia de Mário de Andrade. São Paulo: Martins Fontes, 1986. p. 65-94.
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