Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 31 de maio de 2025

Elizabeth Bishop - Questões de Viagem

Mediante uma prosa poética rica em imagens e denotações sensoriais, a autora norte-americana nos imerge em uma paisagem exótica repleta de cachoeiras, nuvens e montanhas que mais se assemelham a navios encalhados, com o fito de nos fazer ver que a busca por novos horizontes e experiências não passa tão apenas por valorizar esses grandes cenários ou panoramas, senão também os pequenos detalhes, a beleza do aparentemente insignificante.

 

Com efeito, Bishop explora a tensão entre a vontade de viajar para conhecer novos lugares e o conforto de ficar em casa, levantando questões sobre se é a falta de imaginação que nos leva a procurar destinos distantes, ou se o francês Blaise Pascal (1623-1662) estava certo ao sugerir que basta sentar-se calmamente num quarto, para que se possa empreender itinerários capazes de levar às delícias do encantamento.

 

Parece-lhe que, afinal de contas, o aconchego do lar ou o mais remoto destino de uma excursão importam menos do que a capacidade de apreciar o espetáculo, a harmonia e graça de tudo o que nos circunda a cada momento, seja num lugar familiar seja em terras distantes.

 

J.A.R. – H.C.

 

Elizabeth Bishop

(1911-1979)

 

Questions of Travel

 

There are too many waterfalls here; the crowded streams

hurry too rapidly down to the sea,

and the pressure of so many clouds on the mountaintops

makes them spill over the sides in soft slow-motion,

turning to waterfalls under our very eyes.

– For if those streaks, those mile-long, shiny, tearstains,

aren’t waterfalls yet,

in a quick age or so, as ages go here,

they probably will be.

But if the streams and clouds keep travelling, travelling,

the mountains look like the hulls of capsized ships,

slime-hung and barnacled.

 

Think of the long trip home.

Should we have stayed at home and thought of here?

Where should we be today?

Is it right to be watching strangers in a play

in this strangest of theatres?

What childishness is it that while there’s a breath of life

in our bodies, we are determined to rush

to see the sun the other way around?

The tiniest green hummingbird in the world?

To stare at some inexplicable old stonework,

inexplicable and impenetrable,

at any view,

instantly seen and always, always delightful?

Oh, must we dream our dreams

and have them, too?

And have we room

for one more folded sunset, still quite warm?

 

But surely it would have been a pity

not to have seen the trees along this road,

really exaggerated in their beauty,

not to have seen them gesturing

like noble pantomimists, robed in pink.

– Not to have had to stop for gas and heard

the sad, two-noted, wooden tune

of disparate wooden clogs

carelessly clacking over

a grease-stained filling-station floor.

(In another country the clogs would all be tested.

Each pair there would have identical pitch.)

– A pity not to have heard

the other, less primitive music of the fat brown bird

who sings above the broken gasoline pump

in a bamboo church of Jesuit baroque:

three towers, five silver crosses.

– Yes, a pity not to have pondered,

blurr’dly and inconclusively,

on what connection can exist for centuries

between the crudest wooden footwear

and, careful and finicky,

the whittled fantasies of wooden cages.

– Never to have studied history in

the weak calligraphy of songbirds’ cages.

– And never to have had to listen to rain

so much like politicians’ speeches:

two hours of unrelenting oratory

and then a sudden golden silence

in which the traveller takes a notebook, writes:

 

“Is it lack of imagination that makes us come

to imagined places, not just stay at home?

Or could Pascal have been not entirely right

about just sitting quietly in one’s room?

Continent, city, country, society:

the choice is never wide and never free.

And here, or there... No. Should we have stayed at home,

wherever that may be?”

 

In: “Questions of Travel” (1965)

 

A Viajante

(Liubov Popova: artista russa)

 

Questões de Viagem

 

Aqui há um excesso de cascatas; os rios amontoados

correm depressa demais em direção ao mar,

e são tantas nuvens a pressionar os cumes das montanhas

que elas transbordam encosta abaixo, em câmara lenta,

virando cachoeiras diante de nossos olhos.

– Porque se aqueles riscos lustrosos, quilométricos rastros

de lágrimas,

ainda não são cascatas,

dentro de uma breve era (pois são breves as eras daqui)

provavelmente serão.

Mas se os rios e as nuvens continuam viajando, viajando,

então as montanhas lembram cascos de navios soçobrados,

cobertos de limo e cracas.

 

Pensemos na longa viagem de volta.

Devíamos ter ficado em casa pensando nas terras daqui?

Onde estaríamos hoje?

Será direito ver estranhos encenando uma peça

neste teatro tão estranho?

Que infantilidade nos impele, enquanto houver

um sopro de vida

no corpo, a partir decididos a ver

o sol nascendo do outro lado?

O menor beija-flor verde do mundo?

Ficar contemplando uma antiga e inexplicável

obra de cantaria,

inexplicável e impenetrável,

qualquer paisagem,

imediatamente vista e sempre, sempre deleitosa?

Ah, por que insistimos em sonhar os nossos sonhos

e vivê-los também?

E será que ainda temos lugar

para mais um pôr do sol extinto, ainda morno?

 

Mas certamente seria uma pena

não ter visto as árvores à beira dessa estrada,

de uma beleza realmente exagerada,

não tê-las visto gesticular

como nobres mímicos de vestes róseas.

– Não ter parado num posto de gasolina e ouvido

a melancólica melodia de madeira, com duas notas só,

de um par de tamancos descasados

pisando sonoros, descuidados,

um chão todo sujo de graxa.

(Num outro país, os tamancos seriam todos testados.

Os dois pés produziriam exatamente a mesma nota.)

– Uma pena não ter ouvido

a outra música, menos primitiva, do gordo pássaro pardo

cantando acima da bomba de gasolina quebrada

numa igreja de bambu de um barroco jesuítico:

três torres, cinco cruzes prateadas.

– Sim, uma pena não ter especulado,

confusa e inconclusivamente,

sobre a relação que existiria há séculos

entre o mais tosco calçado de madeira

e, cuidadosas, caprichosas,

as formas fantásticas das gaiolas de madeira.

– Jamais ter estudado história

na caligrafia fraca das gaiolas.

– E nunca ter ouvido essa chuva

tão parecida com discurso de político:

duas horas de oratória implacável

e de súbito um silêncio de ouro

em que a viajante abre o caderno e escreve:

 

“Será falta de imaginação o que nos faz procurar

lugares imaginados tão longe do lar?

Ou Pascal se enganou quando escreveu

que é em nosso quarto que devíamos ficar?

Continente, cidade, país: não é tão sobeja

a escolha, a liberdade, quanto se deseja.

Aqui, ali... Não. Teria sido melhor ficar em casa,

onde quer que isso seja?”

 

Em: “Questões de Viagem” (1965)

 

Referência:

 

BISHOP, Elizabeth. Questions of travel / Questões de viagem. Tradução de Paulo Henriques Britto. In: __________. Poemas escolhidos de Elizabeth Bishop. Edição bilíngue. Seleção, tradução e textos introdutórios de Paulo Henriques Britto. 1. ed. 2. reimp. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2012. Em inglês: p. 226, 228 e 230; em português: p. 227, 229 e 231.

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