Cindido, fragmentado,
limitado por forças externas e internas, o falante sente-se confrangido por
seus sentidos, medos, educação, até mesmo pelas influências do cristianismo.
Ainda assim, consegue ser um ente em constante movimento e transformação,
deslocando-se entre realidades, espaços, tempos distintos, num incessante
vaivém.
Há um estado de
insatisfação frente às instituições que lhe parecem opressivas – como a escola
e as estruturas societais hierárquicas –, de objeção a rótulos e convenções
sociais, tudo porque se restringem a forças terrenas, quando o seu desejo é de
“voar”, de estar “em todos os nascimentos e agonias”, para assim alcançar uma
espécie de “desordem transcendente”.
O poema acaba por
expressar, nessa toada, certo misticismo panteísta, naquilo que representa um desejo
do ente lírico pela unidade cósmica com os “meus ancestrais”, a natureza e o
universo, desejoso de fundir-se com todas as experiências humana, do amor e de
comunhão ao seu oposto – o ódio –, dos frissons revolucionários às
manifestações artísticas sem peias.
J.A.R. – H.C.
Murilo Mendes
(1901-1975)
Mapa
A Jorge Burlamaqui
Me colaram no tempo,
me puseram
uma alma viva e um
corpo desconjuntado. Estou
limitado ao norte
pelos sentidos, ao sul pelo medo,
a leste pelo Apóstolo
São Paulo, a oeste pela minha educação.
Me vejo numa
nebulosa, rodando, sou um fluido,
depois chego à
consciência da terra, ando como os outros,
me pregam numa cruz,
numa única vida.
Colégio. Indignado,
me chamam pelo número, detesto a hierarquia.
Me puseram o rótulo
de homem, vou rindo, vou andando,
aos solavancos.
Danço. Rio e choro,
estou aqui, estou ali, desarticulado,
gosto de todos, não
gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,
alguém da terra me
faz sinais, não sei mais o que é o bem nem o mal.
Minha cabeça voou
acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,
tonto de vidas, de
cheiros, de movimentos, de pensamentos,
não acredito em
nenhuma técnica.
Estou com os meus
antepassados, me balanço em arenas espanholas,
é por isso que saio
às vezes pra rua combatendo
personagens imaginários,
depois estou com os
meus tios doidos, às gargalhadas,
na fazenda do
interior, olhando os girassóis do jardim.
Estou no outro lado
do mundo, daqui a cem anos,
levantando populações...
Me desespero porque
não posso estar presente a todos os atos da vida.
Onde esconder minha
cara? O mundo samba na minha cabeça.
Triângulos, estrelas,
noite, mulheres andando,
presságios brotando
no ar, diversos pesos e movimentos
me chamam a atenção,
o mundo vai mudar a
cara,
a morte revelará o
sentido verdadeiro das coisas.
Andarei no ar.
Estarei em todos os
nascimentos e em todas as agonias,
me aninharei nos
recantos do corpo da noiva,
na cabeça dos
artistas doentes, dos revolucionários.
Tudo transparecerá:
vulcões de ódio,
explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,
o vento que vem da
eternidade suspenderá os passos,
dançarei na luz dos
relâmpagos, beijarei sete mulheres,
vibrarei nos cangerês
do mar, abraçarei as almas no ar,
me insinuarei nos
quatro cantos do mundo.
Almas desesperadas eu
vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.
Detesto os que se
tapeiam,
os que brincam de
cabra-cega com a vida, os homens “práticos”...
Viva São Francisco e
vários suicidas e amantes suicidas,
e os soldados que
perderam a batalha, as mães bem mães,
as fêmeas bem fêmeas,
os doidos bem doidos.
Vivam os
transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque
jejuavam muito...
Viva eu, que inauguro
no mundo o estado de bagunça transcendente.
Sou a presa do homem
que fui há vinte anos passados,
dos amores raros que
tive,
vida de planos
ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,
tudo é ritmo do
cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,
estou no ar,
na alma dos
criminosos, dos amantes desesperados,
no meu quarto modesto
da Praia de Botafogo,
no pensamento dos
homens que movem o mundo,
nem triste nem
alegre, chama com dois olhos andando,
sempre em
transformação.
Um homem pensando
(Frederick A.
Bridgman: pintor norte-americano)
Referência:
MENDES, Murilo. Mapa.
In: __________. Poemas (1925-1929) & Bumba-meu-poeta (1930-1931).
Organização, introdução, variantes e biobibliografia por Luciana Stegagno
Picchio. 3. impr. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1988. p. 82-83. (“Poesia Brasileira”)
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