Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 19 de maio de 2025

Murilo Mendes - Mapa

Cindido, fragmentado, limitado por forças externas e internas, o falante sente-se confrangido por seus sentidos, medos, educação, até mesmo pelas influências do cristianismo. Ainda assim, consegue ser um ente em constante movimento e transformação, deslocando-se entre realidades, espaços, tempos distintos, num incessante vaivém.

 

Há um estado de insatisfação frente às instituições que lhe parecem opressivas – como a escola e as estruturas societais hierárquicas –, de objeção a rótulos e convenções sociais, tudo porque se restringem a forças terrenas, quando o seu desejo é de “voar”, de estar “em todos os nascimentos e agonias”, para assim alcançar uma espécie de “desordem transcendente”.

 

O poema acaba por expressar, nessa toada, certo misticismo panteísta, naquilo que representa um desejo do ente lírico pela unidade cósmica com os “meus ancestrais”, a natureza e o universo, desejoso de fundir-se com todas as experiências humana, do amor e de comunhão ao seu oposto – o ódio –, dos frissons revolucionários às manifestações artísticas sem peias.

 

J.A.R. – H.C.

 

Murilo Mendes

(1901-1975)

 

Mapa

 

A Jorge Burlamaqui

 

Me colaram no tempo, me puseram

uma alma viva e um corpo desconjuntado. Estou

limitado ao norte pelos sentidos, ao sul pelo medo,

a leste pelo Apóstolo São Paulo, a oeste pela minha educação.

Me vejo numa nebulosa, rodando, sou um fluido,

depois chego à consciência da terra, ando como os outros,

me pregam numa cruz, numa única vida.

Colégio. Indignado, me chamam pelo número, detesto a hierarquia.

Me puseram o rótulo de homem, vou rindo, vou andando,

aos solavancos.

Danço. Rio e choro, estou aqui, estou ali, desarticulado,

gosto de todos, não gosto de ninguém, batalho com os espíritos do ar,

alguém da terra me faz sinais, não sei mais o que é o bem nem o mal.

Minha cabeça voou acima da baía, estou suspenso, angustiado, no éter,

tonto de vidas, de cheiros, de movimentos, de pensamentos,

não acredito em nenhuma técnica.

Estou com os meus antepassados, me balanço em arenas espanholas,

é por isso que saio às vezes pra rua combatendo

personagens imaginários,

depois estou com os meus tios doidos, às gargalhadas,

na fazenda do interior, olhando os girassóis do jardim.

Estou no outro lado do mundo, daqui a cem anos,

levantando populações...

Me desespero porque não posso estar presente a todos os atos da vida.

Onde esconder minha cara? O mundo samba na minha cabeça.

Triângulos, estrelas, noite, mulheres andando,

presságios brotando no ar, diversos pesos e movimentos

me chamam a atenção,

o mundo vai mudar a cara,

a morte revelará o sentido verdadeiro das coisas.

 

Andarei no ar.

Estarei em todos os nascimentos e em todas as agonias,

me aninharei nos recantos do corpo da noiva,

na cabeça dos artistas doentes, dos revolucionários.

Tudo transparecerá:

vulcões de ódio, explosões de amor, outras caras aparecerão na terra,

o vento que vem da eternidade suspenderá os passos,

dançarei na luz dos relâmpagos, beijarei sete mulheres,

vibrarei nos cangerês do mar, abraçarei as almas no ar,

me insinuarei nos quatro cantos do mundo.

 

Almas desesperadas eu vos amo. Almas insatisfeitas, ardentes.

Detesto os que se tapeiam,

os que brincam de cabra-cega com a vida, os homens “práticos”...

Viva São Francisco e vários suicidas e amantes suicidas,

e os soldados que perderam a batalha, as mães bem mães,

as fêmeas bem fêmeas, os doidos bem doidos.

Vivam os transfigurados, ou porque eram perfeitos ou porque

jejuavam muito...

Viva eu, que inauguro no mundo o estado de bagunça transcendente.

Sou a presa do homem que fui há vinte anos passados,

dos amores raros que tive,

vida de planos ardentes, desertos vibrando sob os dedos do amor,

tudo é ritmo do cérebro do poeta. Não me inscrevo em nenhuma teoria,

estou no ar,

na alma dos criminosos, dos amantes desesperados,

no meu quarto modesto da Praia de Botafogo,

no pensamento dos homens que movem o mundo,

nem triste nem alegre, chama com dois olhos andando,

sempre em transformação.

 

Um homem pensando

(Frederick A. Bridgman: pintor norte-americano)

 

Referência:

 

MENDES, Murilo. Mapa. In: __________. Poemas (1925-1929) & Bumba-meu-poeta (1930-1931). Organização, introdução, variantes e biobibliografia por Luciana Stegagno Picchio. 3. impr. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1988. p. 82-83. (“Poesia Brasileira”)

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