Veja-se a beleza
metapoética destes versos de Gullar, a celebrar a riqueza caleidoscópica e a dimensão
multivocal que a expressão poética pode alcançar, quando consegue ter acesso às
camadas mais profundas do ser. É quando, então, o poema se torna um “tumulto”,
um clamor ressonante e polifônico, uma verdadeira colmeia de significados
plurais, testemunhos, experiências compartilhadas e ecos de outras vidas.
Não sem motivos,
Eucanaã Ferraz – o antologista da coletânea “Veneno Antimonotonia”, de onde o
poema foi transcrito (v. referência) – inseriu-o na seção “Todos os ritmos por
dentro” do livro. Afinal, de que tratam estes versos senão do poder que tem a
linguagem poética para convocar e reanimar todas aquelas “vozes” interiores que
guardamos no fundo d’alma – os mínimos rumores da natureza, os sabores, os aromas,
as cenas condensadas na memória?!
Não foi dessa matéria
que o romancista francês Marcel Proust (1871-1922) erigiu uma das mais famosas
séries romanescas da literatura, em sete volumes, a saber, “Em busca do tempo
perdido” (“À la recherche du temps perdu”)?! Não nos esqueçamos: a monumental
obra se desencadeia a partir das memórias suscitadas pelo simples ato de molhar
uma “madeleine” numa xícara de chá, produzindo efeitos de aroma e de sabor sobre
o narrador Marcel!
J.A.R. – H.C.
Ferreira Gullar
(1930-2016)
Muitas vozes
Meu poema
é um tumulto:
a fala
que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido.
(Estamos todos nós
cheios de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa
voz
se dizes pera,
acende-se um clarão
um rastilho
de tardes e açúcares
ou
se azul
disseres,
pode ser que se agite
o Egeu
em tuas glândulas)
A água que ouviste
num soneto de Rilke
os ínfimos
rumores no capim
o sabor
do hortelã
(essa alegria)
a boca fria
da moça
o maruim
na poça
a hemorragia
da manhã
tudo isso em ti
se deposita
e cala.
Até que de repente
um susto
ou uma ventania
(que o poema dispara)
chama
esses fosseis à fala.
Meu poema
é um tumulto, um
alarido:
basta apurar o
ouvido.
Em: “Muitas vozes”
(1999)
Muitas vozes
(Friedel Dzubas: pintor
germano-americano)
Referência:
GULLAR, Ferreira.
Muitas vozes. In: FERRAZ, Eucanaã (Organização e Prefácio). Veneno
antimonotonia: os melhores poemas e canções contra o tédio. Rio de Janeiro,
RJ: Objetiva, 2005. p. 176-177.
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