Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Ferreira Gullar - Muitas vozes

Veja-se a beleza metapoética destes versos de Gullar, a celebrar a riqueza caleidoscópica e a dimensão multivocal que a expressão poética pode alcançar, quando consegue ter acesso às camadas mais profundas do ser. É quando, então, o poema se torna um “tumulto”, um clamor ressonante e polifônico, uma verdadeira colmeia de significados plurais, testemunhos, experiências compartilhadas e ecos de outras vidas.

 

Não sem motivos, Eucanaã Ferraz – o antologista da coletânea “Veneno Antimonotonia”, de onde o poema foi transcrito (v. referência) – inseriu-o na seção “Todos os ritmos por dentro” do livro. Afinal, de que tratam estes versos senão do poder que tem a linguagem poética para convocar e reanimar todas aquelas “vozes” interiores que guardamos no fundo d’alma – os mínimos rumores da natureza, os sabores, os aromas, as cenas condensadas na memória?!

 

Não foi dessa matéria que o romancista francês Marcel Proust (1871-1922) erigiu uma das mais famosas séries romanescas da literatura, em sete volumes, a saber, “Em busca do tempo perdido” (“À la recherche du temps perdu”)?! Não nos esqueçamos: a monumental obra se desencadeia a partir das memórias suscitadas pelo simples ato de molhar uma “madeleine” numa xícara de chá, produzindo efeitos de aroma e de sabor sobre o narrador Marcel!

 

J.A.R. – H.C.

 

Ferreira Gullar

(1930-2016)

 

Muitas vozes

 

Meu poema

é um tumulto:

a fala

que nele fala

outras vozes

arrasta em alarido.

 

(Estamos todos nós

cheios de vozes

que o mais das vezes

mal cabem em nossa voz

 

se dizes pera,

acende-se um clarão

um rastilho

de tardes e açúcares

ou

se azul disseres,

pode ser que se agite

o Egeu

em tuas glândulas)

 

A água que ouviste

num soneto de Rilke

os ínfimos

rumores no capim

o sabor

do hortelã

(essa alegria)

a boca fria

da moça

o maruim

na poça

a hemorragia

da manhã

 

tudo isso em ti

se deposita

e cala.

Até que de repente

um susto

ou uma ventania

(que o poema dispara)

chama

esses fosseis à fala.

 

Meu poema

é um tumulto, um alarido:

basta apurar o ouvido.

 

Em: “Muitas vozes” (1999)

 

Muitas vozes

(Friedel Dzubas: pintor germano-americano)

 

Referência:

 

GULLAR, Ferreira. Muitas vozes. In: FERRAZ, Eucanaã (Organização e Prefácio). Veneno antimonotonia: os melhores poemas e canções contra o tédio. Rio de Janeiro, RJ: Objetiva, 2005. p. 176-177.

Nenhum comentário:

Postar um comentário