Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 14 de maio de 2025

Miguel Torga - Inventário

Apesar das dificuldades e dos sofrimentos experimentados em sua existência, o poeta afirma com orgulho a sua condição humana, a sua capacidade de sentir e de se expressar, suas misérias a passo com uma dignidade que se mantém incólume, para se desvelar ao mundo como uma “grande maravilha” de espírito, capaz de erguer-se bem acima de um cenário de desolação e de decadência.

 

É que no antinômico espírito do homem coexistem sombras e luzes, um lado arteiro a vagar por um “negro abismo”, entre tormentas e desesperos, e um outro flanco que se pauta pela criação e pela fé inquebrantável na vida – a despeito de suas limitações e imperfeições –, representando, por conseguinte, a esperança e a possibilidade de redenção, em meio a este campo de provas.

 

J.A.R. – H.C.

 

Miguel Torga

(1907-1995)

 

Inventário

 

E, apesar de tudo, sou ainda o Homem,

Um bípede com fala e sentimentos!

Ao cabo de misérias e tormentos,

Continua

A ser a minha imagem que flutua

Na podridão dos charcos luarentos!

 

Sou eu ainda a grande maravilha

Que se mostra no mundo!

O negro abismo que tem lá no fundo

Um regato a correr:

Uma risca de céu e de frescura

Que murmura

A ver se alguma boca a quer beber.

 

Quanto o grave silêncio da paisagem

Me renega e protesta,

Pouco importa na festa

Deste encontro feliz;

Obra de Arcanjo ou de Satanás,

Eu é que fui capaz

De fazer o que fiz!

 

Podia ser melhor o meu destino,

Ter o sol mais aberto em cada mão...

Mas, Adão,

Dei o que a argila deu.

E, corpo e alma da degradação,

O milagre é que o Homem não morreu!

 

Não! Não me queiram na cova que não tenho,

Porque eu vivo, e respiro, e acredito!

Sou eu que canto ainda e que palpito

No meu canto!

Sou eu que na pureza do meu grito

Me levanto!

 

O homem atormentado

(John Nightingale: artista norte-americano)

 

Referência:

 

TORGA, Miguel. Inventário. In: __________. Cântico do homem: poesia. 4. ed. Coimbra, PT: Gráfica de Coimbra, jan. 1974. p. 7-9.

 

5 comentários:

  1. Onde descobriu esta pintura específica do John Nightingale?

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    1. Boa noite, Lenon: costumo fazer pesquisas de imagens pelo Google que sejam, preferencialmente, identificadas por nome e autor. Acontece que as postagens são prévias às datas em que publicadas, muitas delas em mais de meio ano. Neste momento, em pesquisa reversa, já não encontro nem a imagem, nem os seus créditos na internet, ainda que tenha empregado os melhores mecanismos de busca. Ficarei lhe devendo! João A. Rodrigues

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    2. Agradeço a resposta, meu querido! Seu blog é uma das melhores coisas da Internet. Parabéns pelo diligente trabalho!

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    3. Muito grato pelo seu comentário tão alentador, sobretudo por saber que aprecia o conteúdo. Fico feliz por poder contribuir com algo positivo na internet. Volte sempre! J. A. Rodrigues

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