Nada melhor como o derradeiro
dia do ano para avaliar os momentos pelos quais passamos ao longo dos últimos
doze meses, quer positivos, quer arrevesados: em meio a feitos significativos,
agradáveis ou belos, ocorreram, decerto, outros tantos que transitaram na
contramão, haja vista que associados a experiências dolorosas ou mesmo baldadas,
das quais, seja como for, haveremos de extrair proveitosas lições para as
jornadas vindouras.
Entre sereno e nostálgico,
o poeta valoriza os momentos simples, mas relevantes, pelos quais passou em
vida – afinal, “nem todos os caminhos foram descaminhos” –, e mesmo sob a incerteza
do amanhã, obstina-se em depositar as suas esperanças nas mãos da Providência, confiante
de que dias melhores virão, mantendo inquebrantável o ânimo em proveito de
inéditas incursões ainda neste plano de existência.
J.A.R. – H.C.
Abgar Renault
(1901-1995)
31 de dezembro de
1932
Tão bom pensar,
depois de ter andado tanto,
que nem todos os caminhos
foram descaminhos,
nem todas as horas
passaram vazias e distantes,
nem todas as flores
de um íntimo jardim se desfolharam
ou emurcheceram,
nem todas as estrelas
não se acenderam
ao infinito gesto das
nossas mãos,
nem todas as cartas
que escrevia um coração ficaram
sem resposta,
e nem todas as coisas
más aconteceram,
que poderiam ter
acontecido...
Tão bom trazer nos
olhos, cheios ainda de
uns restos de
infância,
aquelas paisagens que
nos foram fazendo longe
e acolheram por
minutos a alma cansada
da vesga, incompreensível
caminhada...
Tão bom recordar
humildes coisas ocultas,
que vieram, sem
intenção, nos inesperados de cada dia,
despertar em nós
obliterado sentido
e revelar ao nosso
ouvido
o segredo de que
ainda restam dois ou três pássaros
cantando nas últimas
árvores,
namorados ainda
líricos e pálidos
dizendo-se em
palavras de silêncio
montes e mares de
infinitas coisas
sob o patrocínio
discreto do crepúsculo...
Noites cheias de lua
a clarear antigos
córregos
e a longa, incerta
rua que nasceu na infância...
sinos românticos a
ecoar cristalinamente
nas manhãs cheias de
domingo e vozes azuis...
Tão bom ficar assim,
noturnamente, num fim de ano,
olhos cerrados, alma
escancarada,
o pensamento
esquecido lá longe em vagas coisas,
sentindo o tempo
fugir por entre os dedos
e relembrando o que
foi, o que não foi, e dizer, sem palavras,
que a vida está por
aí brincando de esconder conosco
e que amanhã, se Deus
quiser, ela continuará...
Sozinho ao Final
(Prakob Thaicharoen:
artista tailandês)
Referência:
RENAULT, Abgar. 31 de
dezembro de 1932. In: __________. Obra poética. Rio de Janeiro, RJ:
Record, 1990. p. 82.
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