Eis aqui uma crítica
sutil e atenta sobre a posição da mulher em sociedade e a experiência de uma
dama num mundo onde a cortesia coexiste com a malícia, em meio ao embate
quotidiano para se manter a compostura e a dignidade: tudo se passa numa pastelaria,
entre as regras da etiqueta e da formalidade, às quais se confere precedência e
prevalência sobre as de contenção da insolência e da intrusão masculina.
Ante as perdas relacionais
da senhora, agora resignada e reservada, aferra-se ela à devoção ao seu cão,
objeto direto da petição inicial e final em itálico, aparentemente educada e circunscrita
à ocasião, mas que, no fundo, acaba por se transmutar numa metáfora alusiva a
todas as normas sociais que impõem restrições e expectativas muitas vezes dominadoras
às mulheres.
J.A.R. – H.C.
Alexandre O’Neill
(1924-1986)
Meditação na
pastelaria
Por favor, Madame,
tire as patas,
Por favor, as patas
do seu cão
De cima da mesa, que
a gerência
Agradece.
Nunca se sabe quando
começa a insolência!
Que tempo este, meu
Deus, uma senhora
Está sempre em perigo
e o perigo
Em cada rua, em cada
olhar,
Em cada sorriso ou
gesto
De boa-educação!
A inspecção irónica
das pernas,
Eis o que os homens
sabem oferecer-nos,
Inspecção demorada e
ascendente,
Acompanhada de
assobios
E de sorrisos que se
abrem e se fecham
Procurando uma
fresta, uma fraqueza
Qualquer da nossa
parte…
Mas uma senhora é uma
senhora.
Só vê a malícia quem
a tem.
Uma senhora passa
E ladrar é o seu
dever – se tanto for preciso!
*
O pó de arroz:
Horrível!
O bâton:
Igual!
O amor de Raul é já
uma saudade,
Foi sempre uma
saudade…
(O escritório
Toma-lhe todo o
tempo?
Desconfio que não…)
Filhos tivemos um:
Desapareceu…
E já nem sei chorar!
*
Chorar…
Como eu queria poder
chorar!
Chorar encostada a
uma saudade
Bem maior do que eu,
Que não fosse esta
tristeza
Absurda de cada dia:
Unha
Quebrada de
melancolia…
Perdi tudo, quase
tudo…
Hoje,
Resta-me a devoção
E este pequeno
inteligente cão.
Por favor, Madame,
tire as patas,
Por favor, as patas
do seu cão
De cima da mesa, que
a gerência
Agradece.
Em: “No Reino da
Dinamarca” (1958)
Jovem com seu cão
(Pierre-Auguste Renoir: pintor francês)
Referência:
O’NEILL, Alexandre. Meditação na pastelaria. In: __________. Poesias completas. Introdução Miguel Tamen. 5. ed. Lisboa, PT: Assírio & Alvim, 2007. p. 41-42.
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