Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 11 de dezembro de 2024

Alexandre O’Neill - Meditação na pastelaria

Eis aqui uma crítica sutil e atenta sobre a posição da mulher em sociedade e a experiência de uma dama num mundo onde a cortesia coexiste com a malícia, em meio ao embate quotidiano para se manter a compostura e a dignidade: tudo se passa numa pastelaria, entre as regras da etiqueta e da formalidade, às quais se confere precedência e prevalência sobre as de contenção da insolência e da intrusão masculina.

 

Ante as perdas relacionais da senhora, agora resignada e reservada, aferra-se ela à devoção ao seu cão, objeto direto da petição inicial e final em itálico, aparentemente educada e circunscrita à ocasião, mas que, no fundo, acaba por se transmutar numa metáfora alusiva a todas as normas sociais que impõem restrições e expectativas muitas vezes dominadoras às mulheres.

 

J.A.R. – H.C.

 

Alexandre O’Neill

(1924-1986)

 

Meditação na pastelaria

 

Por favor, Madame, tire as patas,

Por favor, as patas do seu cão

De cima da mesa, que a gerência

Agradece.

 

Nunca se sabe quando começa a insolência!

Que tempo este, meu Deus, uma senhora

Está sempre em perigo e o perigo

Em cada rua, em cada olhar,

Em cada sorriso ou gesto

De boa-educação!

 

A inspecção irónica das pernas,

Eis o que os homens sabem oferecer-nos,

Inspecção demorada e ascendente,

Acompanhada de assobios

E de sorrisos que se abrem e se fecham

Procurando uma fresta, uma fraqueza

Qualquer da nossa parte…

 

Mas uma senhora é uma senhora.

Só vê a malícia quem a tem.

Uma senhora passa

E ladrar é o seu dever – se tanto for preciso!

 

*

 

O pó de arroz:

Horrível!

O bâton:

Igual!

 

O amor de Raul é já uma saudade,

Foi sempre uma saudade…

 

(O escritório

Toma-lhe todo o tempo?

Desconfio que não…)

 

Filhos tivemos um:

Desapareceu…

E já nem sei chorar!

 

*

 

Chorar…

Como eu queria poder chorar!

 

Chorar encostada a uma saudade

Bem maior do que eu,

Que não fosse esta tristeza

Absurda de cada dia:

Unha

Quebrada de melancolia…

 

Perdi tudo, quase tudo…

 

Hoje,

Resta-me a devoção

E este pequeno inteligente cão.

 

Por favor, Madame, tire as patas,

Por favor, as patas do seu cão

De cima da mesa, que a gerência

Agradece.

 

Em: “No Reino da Dinamarca” (1958)

 

Jovem com seu cão

(Pierre-Auguste Renoir: pintor francês)

 

Referência:

 

O’NEILL, Alexandre. Meditação na pastelaria. In: __________. Poesias completas. Introdução Miguel Tamen. 5. ed. Lisboa, PT: Assírio & Alvim, 2007. p. 41-42.

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