Desafiando as convenções
literárias estabelecidas, com suas etiquetas e rígidas estruturas, Saramago nos
mostra que a essência mesma do poético pode fluir naturalmente através de
diferentes formas de expressão, quer no domínio do poema propriamente dito,
quer no da prosa – neste caso, o vetor por meio do qual tão célebre se tornou
ao longo de décadas, concebendo obras magistrais que lhe valeram a atribuição
do Prêmio Nobel em 1998.
Expressar-se poeticamente
como novelista parece haver-se tornado um estímulo ao autor português para tentar
provar que a poesia não é uma entidade confinada em jurisdição própria e
apartada, senão um ingrediente que também pode ser integrado à prosa, como, por
exemplo, Saramago o faz em “O ano da morte de Ricardo Reis”, de 1984.
Se o leitor me
permite discorrer sobre uma das leituras que mais me encantou, exatamente por
prover um substancioso caudal poético numa prosa exuberantemente traduzida ao
português por Herbert Caro (1906-1991), diria que “A Morte de Virgílio” (1945),
de Hermann Broch (1886-1951), com aquela sua atmosfera entre o histórico e o onírico,
ilustra magistralmente o campo de possibilidades que se abre quando o espírito
se permite vagar pelas regiões interseccionais desses dois gêneros literários.
J.A.R. – H.C.
José Saramago
(1922-2010)
Poesia: o que o
escritor falou sobre
Creio, e não estou a
ser nada original, achar excelente não ser possível catalogar os livros consoante
os gêneros a que supostamente devam pertencer. É como se entre os gêneros não houvesse
fronteiras tão rígidas como as que separam as nações. Olhamos o mapa e vemo-lo dividido
em riscos ou cores. É muito bom que hoje seja difícil catalogar os gêneros. Se
cada um puder aproveitar a riqueza dos outros, acho ótimo. Não sei se daqui a
uns anos não poderemos fundir todos os gêneros para depois os tornarmos a
dividir, num fenômeno de concentração e expansão semelhante ao que existe nas
galáxias. Neste momento, creio que cada um dos gêneros literários se expande em
relação a todos os outros. Às vezes dizem-me: “Você devia fazer poesia”, e eu
respondo: “Procurem-na nas páginas dos meus romances”. (p. 181)
“Sou a pessoa mais
banal deste mundo”, NT, Lisboa, 23 de maio de 1984 [Entrevista a Alexandre
Correia].
Ω
Os olhos com que
observo a realidade não excluem nenhum elemento dela e a poesia é um dos
elementos que a integram. Há sempre um olhar que suscita a centelha poética da
realidade. Todas as maneiras de ver, de olhar, são maneiras pessoais. Como
escrevo em estado de liberdade, nunca coloco um filtro entre o que quero contar
e o modo como vai ser dito. Quando escrevo, estou aberto a tudo o que surge
nesse momento. Uma coisa é o que está para ser escrito e outra é o que no
momento de escrever vejo, ouço e sinto. Posso, afinal, dizer que se trata de
uma maneira pouco cerebral de escrever, o que está em aberta contradição com o que
a crítica tem dito dos meus livros. Se há cerebralização, conduz a uma
linguagem poeticamente muito mais rica do que essa denominação dá a entender.
(p. 229)
“José Saramago fala
de Memorial do convento: ‘A língua que uso nos romances faz corpo com aquilo
que conto’”, O Diário, Lisboa, 21 de novembro de 1982 [Entrevista a José Jorge
Letria].
Ω
No fundo, não deixei
de ser poeta, mas um poeta que se expressa através da prosa e provavelmente – e
esta é uma ideia lisonjeira que eu quero ter de mim mesmo – é possível que eu
seja hoje mais e melhor poeta do que pude ser quando escrevia poesia. Tinha
chegado à conclusão, quando parei de escrevê-la, que seria sempre um poeta mais
ou menos medíocre, e ninguém gosta, evidentemente, de ser medíocre. Essa mesma
poesia que eu abandonei, formalmente, está presente em toda a minha obra de
romancista. Expresso-me poeticamente através da prosa com mais força, talvez
com mais segurança e talvez mais poeticamente do que consegui quando oficiava
de poeta.
Não sei que papel
devem ter hoje os intelectuais do mundo. A questão é saber se realmente eles
querem representar algum papel, e a impressão que eu tenho, que os fatos me oferecem,
é que não querem representar nenhum papel. Renunciaram à sua tarefa de consciência
moral que algumas vezes tiveram. Hoje, o escritor, diante da televisão, diante
dos grandes meios de comunicação social, não tem praticamente voz e, mais
ainda, a sua própria voz muitas vezes o condiciona às necessidades e aos
interesses desse próprio meio. Cada vez mais somos meros autores de livros e
cada vez contribuímos menos para a formação de uma consciência. (p. 234-235)
“Saramago: ‘Los
vínculos de Portugal con una España federativa provocarían una revisión total
de la relación’”, Diario 16 (Suplemento Culturas), Madri, 11 de fevereiro de
1989 [Entrevista a César Antonio Molina] [Recolhida em César Antonio Molina,
Sobre el iberismo y otros escritos de literatura portuguesa, introdução de José
Saramago, epílogo de Ángel Crespo, Madri, Akal, 1990, pp. 247-75].
Ω
Quando escrevi
poesia, tudo aquilo foi pensado; lembro-me de que o poema era muito fabricado,
no melhor sentido que a palavra tem, ao passo que os afloramentos poéticos nos meus
romances surgem, não há fabricação poética nos meus romances. A mesma
coisa não posso dizer, talvez, da poesia. A poesia é fabricadamente poesia. E
aquilo a que chamei essencialidade e agora estou a chamar afloramentos,
esses afloramentos poéticos que surgem e que qualquer leitor encontra,
reconhece e define ou classifica como tal surgem no próprio fluxo narrativo com
espontaneidade; quer dizer, quando eu falava de essencialidade poética, é porque
nela não há fabricação: há aparição. (p. 240-241)
Carlos Reis, Diálogos
com José Saramago, Lisboa, Caminho, 1998.
Ω
A minha poesia é uma
poesia de segunda ou terceira classe, não vale a pena teimar. Não tive ilusões,
é o que é, limpa, honesta e em algum momento terá sido algo mais do que isso, mas,
enfim, não vou ficar na História como poeta. Suponho que se ficar na História
será como um romancista que também fez alguns versos. (p. 322)
João Céu e Silva, Uma
longa viagem com José Saramago, Porto, Porto Editor, 2009.
Cupidos: Alegoria da
Poesia
(François Boucher: pintor
francês)
Referência:
SARAMAGO, José. As palavras de Saramago. Organização e seleção de Fernando Gómez Aguilera. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2010.
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