Num tom reflexivo e
crítico em relação ao modo como a sociedade contemporânea recebe e interpreta a
vinda do Cristo recém-nascido, Drummond acaba por ampliar o significado da Natividade
para além das representações tradicionais, vinculando-a à quotidianidade e à humanidade
nas suas mais variadas facetas.
Uma nostalgia da infância
nos enche de compaixão e de sensibilidade, daí porque a chegada de uma criança
muito mais se equipara às nossas experiências diuturnas para acolhê-la com a
máxima receptividade, do que propriamente às veneráveis ordenações dos rituais
religiosos.
Símbolo de constante
renovação, feito um móbil silencioso que se restabelece na figura frágil de um
menino, Cristo sempre nos reaparece a cada dezembro e, como ilustra o poeta, sob
inúmeras formas, apresentando uma essência sempre atual – digo que às vezes até
mesmo dilemáticas –, em meio a este mundo tão secularizado.
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de
Andrade
(1902-1987)
Disfarce
Na manjedoura? No
presépio?
No chão, diante do
pórtico arruinado, como em Siena o pintou
Francesco di Giorgio?
Na capelinha torta de
São Gonçalo do Rio Abaixo?
Na bigue cesta de
natal?
...repousa o infante
esperado.
As luzes em que o
esculpiram tornam-lhe o corpo dourado.
O Cristo é sempre
novo, e na fraqueza deste menino
há um silencioso
motor, e uma confidência e um sino.
Nasce a cada dezembro
e nasce de mil jeitos.
Temos de pesquisá-lo
até na gruta de nossos defeitos.
Ministros, deputados,
presidentes de sindicatos
prosternam-se
estabelecendo os primeiros contatos.
Preside (oculto) as assembleias
de todas as sociedades
anônimas, anônimo ele
próprio, nas inumerabilidades
de sua pobretude. E
tenta renascer a cada pessoa e hora
em que se distrai
nossa polícia, assim como uma flora
sem jardineiro
apendoa, e sem húmus, no espaço
restaura o dinamismo
das nuvens. Sua pureza arma um laço
à astúcia terrestre
com que todos nos defendemos
da segunda face do
amor, a face dos extremos.
Inventou ser menino
para ser pelo menos contemplado,
senão querido (pois
amamos a nosso modo limitado,
e de criança temos
pena, porque submersos garotos
ainda fazem boiar em
nós seus barcos rotos,
e a tristeza
infantil, malva seca no catecismo, nunca se esquece).
Assim o Cristo vem,
numa cantiga sem dono, mais do que na prece.
(Publicado na edição
do “Correio da Manhã”, de 25/12/1960)
Paisagem de Inverno
(Caspar David
Friedrich: pintor alemão)
Referência:
ANDRADE, Carlos
Drummond. Disfarce. In: __________. Receita de ano-novo. Concepção e
seleção de Pedro Augusto Graña Drummond. Ilustrações de Andrés Sandoval. 1. ed.
São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2015. p. 15-17.
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