Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Carlos Drummond de Andrade - Disfarce

Num tom reflexivo e crítico em relação ao modo como a sociedade contemporânea recebe e interpreta a vinda do Cristo recém-nascido, Drummond acaba por ampliar o significado da Natividade para além das representações tradicionais, vinculando-a à quotidianidade e à humanidade nas suas mais variadas facetas.

 

Uma nostalgia da infância nos enche de compaixão e de sensibilidade, daí porque a chegada de uma criança muito mais se equipara às nossas experiências diuturnas para acolhê-la com a máxima receptividade, do que propriamente às veneráveis ordenações dos rituais religiosos.

 

Símbolo de constante renovação, feito um móbil silencioso que se restabelece na figura frágil de um menino, Cristo sempre nos reaparece a cada dezembro e, como ilustra o poeta, sob inúmeras formas, apresentando uma essência sempre atual – digo que às vezes até mesmo dilemáticas –, em meio a este mundo tão secularizado.

 

J.A.R. – H.C.

 

Carlos Drummond de Andrade

(1902-1987)

 

Disfarce

 

Na manjedoura? No presépio?

No chão, diante do pórtico arruinado, como em Siena o pintou

Francesco di Giorgio?

Na capelinha torta de São Gonçalo do Rio Abaixo?

Na bigue cesta de natal?

 

...repousa o infante esperado.

As luzes em que o esculpiram tornam-lhe o corpo dourado.

 

O Cristo é sempre novo, e na fraqueza deste menino

há um silencioso motor, e uma confidência e um sino.

 

Nasce a cada dezembro e nasce de mil jeitos.

Temos de pesquisá-lo até na gruta de nossos defeitos.

 

Ministros, deputados, presidentes de sindicatos

prosternam-se estabelecendo os primeiros contatos.

 

Preside (oculto) as assembleias de todas as sociedades

anônimas, anônimo ele próprio, nas inumerabilidades

 

de sua pobretude. E tenta renascer a cada pessoa e hora

em que se distrai nossa polícia, assim como uma flora

 

sem jardineiro apendoa, e sem húmus, no espaço

restaura o dinamismo das nuvens. Sua pureza arma um laço

 

à astúcia terrestre com que todos nos defendemos

da segunda face do amor, a face dos extremos.

 

Inventou ser menino para ser pelo menos contemplado,

senão querido (pois amamos a nosso modo limitado,

 

e de criança temos pena, porque submersos garotos

ainda fazem boiar em nós seus barcos rotos,

 

e a tristeza infantil, malva seca no catecismo, nunca se esquece).

Assim o Cristo vem, numa cantiga sem dono, mais do que na prece.

 

(Publicado na edição do “Correio da Manhã”, de 25/12/1960)

 

Paisagem de Inverno

(Caspar David Friedrich: pintor alemão)

 

Referência:

 

ANDRADE, Carlos Drummond. Disfarce. In: __________. Receita de ano-novo. Concepção e seleção de Pedro Augusto Graña Drummond. Ilustrações de Andrés Sandoval. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2015. p. 15-17.

  

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