Viver intensamente,
acumulando memórias e sensações que nos possibilitem antecipar ou entender o
que está por vir, nesse ciclo sazonal de mudanças entretecidas pelas forças de Eros
e de Thanatos, entre incertezas e esperanças: “a vida não é um crime perfeito”,
mas bem pode ser um presente que se pode desfrutar sem pesares, caso se saiba
usufruí-la com temperança.
Sob a superfície da
vida jazem os substratos da escuridão e da morte: mas por que subjugar-nos aos
apelos de baixo, se a beleza do andar de cima incorpora todos os ingredientes
capazes de nos tornar felizes?! Afinal, sigamos a orientação do Eclesiastes (14,
14): “Não se prive de um dia feliz, nem deixe escapar um desejo legítimo”.
J.A.R. – H.C.
Claudio Mello e Souza
(1935-2011)
Um Natal
Saber o que nos traz
o vento,
além daquilo que voa
no próprio vento.
Ter vivido tantas
nuvens
que podemos ouvi-las chegar,
como quem chega sem
pisar,
olhar de amante, faro
de assaltante.
Calar, saber que, cm
cada palavra,
há uma incisão:
o lodo no fundo e,
mais fundo, a larva,
a extrema-unção.
Saber a que horas
passam as traineiras
e vê-las, verdes, contornar
o arco-íris,
cores que pescam a
cor do mar.
Medir a vida na
guelra de um namorado,
como quem toma o
pulso de um desesperado.
(O farol da ilha Rasa
pisca-me o olho
incessante.
E o infinito que me
quer amante
e me garante
amanhecer lá em casa.)
É tempo de esperar
o tempo de florir,
o tempo de gestar ou
de partir para outros tempos
– dentro deste mesmo
tempo.
Dizer: ‘Foi um verão
de chuvas
aquele em que a
Clarinha nasceu.’
Depois de tantos
verões,
eu já sou íntimo de
qualquer luz;
e depois de tantos
ventos,
prevejo o sudeste em
plena calmaria.
Ser o prenuncio do
cair
da primeira folha do
outono.
Dizer: ‘Este ano, o
inverno vai chegar mais cedo.’
Pisar as folhas,
senti-las estalar,
manchas de ouro,
veias de sangue abertas,
saudade do verão que
virá,
na Bahia, a espuma
feito cabelos na pedra,
a cevada,
o lúbrico,
o lúpulo,
n escuna,
a menina vestidinha de
branco,
impúbere perfume de
alecrim.
Olhar sem susto para
o fim.
No meu último passo,
serei o único
sujeito.
Deixarei vestígios.
A vida não é um crime
perfeito.
Carta ao Papai-Noel
(Richard Macneil:
artista inglês)
Referência:
MELLO E SOUZA,
Claudio. Um Natal. In: __________. Passageiro do tempo. Rio de Janeiro,
RJ: Nova Fronteira, 1985. p. 74-76. (“Poesia Brasileira”)
Nenhum comentário:
Postar um comentário