Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 22 de dezembro de 2024

Claudio Mello e Souza - Um Natal

Viver intensamente, acumulando memórias e sensações que nos possibilitem antecipar ou entender o que está por vir, nesse ciclo sazonal de mudanças entretecidas pelas forças de Eros e de Thanatos, entre incertezas e esperanças: “a vida não é um crime perfeito”, mas bem pode ser um presente que se pode desfrutar sem pesares, caso se saiba usufruí-la com temperança.

 

Sob a superfície da vida jazem os substratos da escuridão e da morte: mas por que subjugar-nos aos apelos de baixo, se a beleza do andar de cima incorpora todos os ingredientes capazes de nos tornar felizes?! Afinal, sigamos a orientação do Eclesiastes (14, 14): “Não se prive de um dia feliz, nem deixe escapar um desejo legítimo”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Claudio Mello e Souza

(1935-2011)

 

Um Natal

 

Saber o que nos traz o vento,

além daquilo que voa no próprio vento.

Ter vivido tantas nuvens

que podemos ouvi-las chegar,

como quem chega sem pisar,

olhar de amante, faro de assaltante.

 

Calar, saber que, cm cada palavra,

há uma incisão:

o lodo no fundo e, mais fundo, a larva,

a extrema-unção.

 

Saber a que horas passam as traineiras

e vê-las, verdes, contornar o arco-íris,

cores que pescam a cor do mar.

 

Medir a vida na guelra de um namorado,

como quem toma o pulso de um desesperado.

 

(O farol da ilha Rasa

pisca-me o olho incessante.

E o infinito que me quer amante

e me garante amanhecer lá em casa.)

 

É tempo de esperar

o tempo de florir,

o tempo de gestar ou de partir para outros tempos

– dentro deste mesmo tempo.

 

Dizer: ‘Foi um verão de chuvas

aquele em que a Clarinha nasceu.’

Depois de tantos verões,

eu já sou íntimo de qualquer luz;

e depois de tantos ventos,

prevejo o sudeste em plena calmaria.

 

Ser o prenuncio do cair

da primeira folha do outono.

Dizer: ‘Este ano, o inverno vai chegar mais cedo.’

 

Pisar as folhas, senti-las estalar,

manchas de ouro, veias de sangue abertas,

saudade do verão que virá,

na Bahia, a espuma feito cabelos na pedra,

a cevada,

o lúbrico,

o lúpulo,

n escuna,

a menina vestidinha de branco,

impúbere perfume de alecrim.

 

Olhar sem susto para o fim.

No meu último passo,

serei o único sujeito.

Deixarei vestígios.

A vida não é um crime perfeito.

 

Carta ao Papai-Noel

(Richard Macneil: artista inglês)

 

Referência:

 

MELLO E SOUZA, Claudio. Um Natal. In: __________. Passageiro do tempo. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira, 1985. p. 74-76. (“Poesia Brasileira”)

 

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