Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 13 de março de 2024

Vinicius de Moraes - O Desespero da Piedade

Vinicius aqui enuncia uma extensa rogatória a Deus, postulando-lhe piedade por tudo quanto possa revelar sofreguidão, desassossego e desalento no viver humano, em meio aos infortúnios e à pobreza; mas também àqueles um pouco mais aquinhoados, porque, como todos, têm lá as suas desventuras, seus transtornos, seus dissabores, nesse percurso quotidiano do nascer ao pôr do sol.

 

A solidão, a luta estressante do dia a dia, o desencanto com as expectativas de uma vida melhor que nunca chega, o amor comprado que não satisfaz, a política que persiste em seus jogos de aliciamento e de corrupção, as aspirações não concretizadas, os desconfortos provocados pelas carências do corpo e da alma... – tudo contribui para que a morte encontre “a vida em desintegração”. Tende piedade, Senhor!

 

J.A.R. – H.C.

 

Vinicius de Moraes

(1913-1980)

 

O Desespero da Piedade

 

Meu senhor, tende piedade dos que andam de bonde

E sonham no longo percurso com automóveis, apartamentos...

Mas tende piedade também dos que andam de automóvel

Quando enfrentam a cidade movediça de sonâmbulos, na direção.

 

Tende piedade das pequenas famílias suburbanas

E em particular dos adolescentes que se embebedam de domingos

Mas tende mais piedade ainda de dois elegantes que passam

E sem saber inventam a doutrina do pão e da guilhotina.

 

Tende muita piedade do mocinho franzino, três cruzes, poeta

Que só tem de seu as costeletas e a namorada pequenina

Mas tende mais piedade ainda do impávido forte colosso do esporte

E que se encaminha lutando, remando, nadando para a morte.

 

Tende imensa piedade dos músicos dos cafés e casas de chá

Que são virtuoses da própria tristeza e solidão

Mas tende piedade também dos que buscam silêncio

E súbito se abate sobre eles uma ária da Tosca.

 

Não esqueçais também em vossa piedade os pobres que enriqueceram

E para quem o suicídio ainda é a mais doce solução

Mas tende realmente piedade dos ricos que empobreceram

E tornam-se heroicos e à santa pobreza dão um ar de grandeza.

 

Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos

Que em suas alminhas claras deixam a lágrima e a incompreensão

E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de balcão

Que amam as freguesas e saem de noite, quem sabe aonde vão...

 

Tende piedade dos barbeiros em geral, e dos cabeleireiros

Que se efeminam por profissão mas que são humildes nas suas carícias

Mas tende mais piedade ainda dos que cortam o cabelo:

Que espera, que angústia, que indigno, meu Deus!

 

Tende piedade dos sapateiros e caixeiros de sapataria

Que lembram madalenas arrependidas pedindo piedade pelos sapatos

Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo

Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.

 

Tende piedade dos homens úteis como os dentistas

Que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer

Mas tende mais piedade dos veterinários e práticos de farmácia

Que muito eles gostariam de ser médicos, Senhor.

 

Tende piedade dos homens públicos e em particular dos políticos

Pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão

Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes

Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.

 

E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tende piedade das mulheres

Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres

Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres

Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!

 

Tende piedade da moça feia que serve na vida

De casa, comida e roupa lavada da moça bonita

Mas tende mais piedade ainda da moça bonita

Que o homem molesta – que o homem não presta, não presta, meu Deus!

 

Tende piedade das moças pequenas das ruas transversais

Que de apoio na vida só têm Santa Janela da Consolação

E sonham exaltadas nos quartos humildes

Os olhos perdidos e o seio na mão.

 

Tende piedade da mulher no primeiro coito

Onde se cria a primeira alegria da Criação

E onde se consuma a tragédia dos anjos

E onde a morte encontra a vida em desintegração.

 

Tende piedade da mulher no instante do parto

Onde ela é como a água explodindo em convulsão

Onde ela é como a terra vomitando cólera

Onde ela é como a lua parindo desilusão.

 

Tende piedade das mulheres chamadas desquitadas

Porque nelas se refaz misteriosamente a virgindade

Mas tende piedade também das mulheres casadas

Que se sacrificam e se simplificam a troco de nada.

 

Tende piedade, Senhor, das mulheres chamadas vagabundas

Que são desgraçadas e são exploradas e são infecundas

Mas que vendem barato muito instante de esquecimento

E em paga o homem mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.

 

Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas

De corpo hermético e coração patético

Que saem à rua felizes mas que sempre entram desgraçadas

Que se creem vestidas mas que em verdade vivem nuas.

 

Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres

Que ninguém mais merece tanto amor e amizade

Que ninguém mais deseja tanta poesia e sinceridade

Que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade.

 

Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras

Que são crianças e são trágicas e são belas

Que caminham ao sopro dos ventos e que pecam

E que têm a única emoção da vida nelas.

 

Tende piedade delas, Senhor, que uma me disse

Ter piedade de si mesma e de sua louca mocidade

E outra, à simples emoção do amor piedoso

Delirava e se desfazia em gozos de amor de carne.

 

Tende piedade delas, Senhor, que dentro delas

A vida fere mais fundo e mais fecundo

E o sexo está nelas, e o mundo está nelas

E a loucura reside nesse mundo.

 

Tende piedade, Senhor, das santas mulheres

Dos meninos velhos, dos homens humilhados – sede enfim

Piedoso com todos, que tudo merece piedade

E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!

 

Na Bolsa de Valores

(Edgar Degas: pintor francês)

 

Referência:

 

MORAES, Vinicius. O desespero da piedade. In: MILLIET, Sérgio (Seleção e Notas). Obras-primas da poesia universal. 3. ed. São Paulo, SP: Livraria Martins Editora, 1957. p. 430-433.

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