Vinicius aqui enuncia
uma extensa rogatória a Deus, postulando-lhe piedade por tudo quanto possa revelar
sofreguidão, desassossego e desalento no viver humano, em meio aos infortúnios
e à pobreza; mas também àqueles um pouco mais aquinhoados, porque, como todos, têm
lá as suas desventuras, seus transtornos, seus dissabores, nesse percurso quotidiano
do nascer ao pôr do sol.
A solidão, a luta
estressante do dia a dia, o desencanto com as expectativas de uma vida melhor
que nunca chega, o amor comprado que não satisfaz, a política que persiste em
seus jogos de aliciamento e de corrupção, as aspirações não concretizadas, os
desconfortos provocados pelas carências do corpo e da alma... – tudo contribui
para que a morte encontre “a vida em desintegração”. Tende piedade, Senhor!
J.A.R. – H.C.
Vinicius de Moraes
(1913-1980)
O Desespero da
Piedade
Meu senhor, tende
piedade dos que andam de bonde
E sonham no longo
percurso com automóveis, apartamentos...
Mas tende piedade
também dos que andam de automóvel
Quando enfrentam a
cidade movediça de sonâmbulos, na direção.
Tende piedade das
pequenas famílias suburbanas
E em particular dos
adolescentes que se embebedam de domingos
Mas tende mais
piedade ainda de dois elegantes que passam
E sem saber inventam
a doutrina do pão e da guilhotina.
Tende muita piedade
do mocinho franzino, três cruzes, poeta
Que só tem de seu as
costeletas e a namorada pequenina
Mas tende mais
piedade ainda do impávido forte colosso do esporte
E que se encaminha
lutando, remando, nadando para a morte.
Tende imensa piedade
dos músicos dos cafés e casas de chá
Que são virtuoses da
própria tristeza e solidão
Mas tende piedade
também dos que buscam silêncio
E súbito se abate
sobre eles uma ária da Tosca.
Não esqueçais também
em vossa piedade os pobres que enriqueceram
E para quem o
suicídio ainda é a mais doce solução
Mas tende realmente
piedade dos ricos que empobreceram
E tornam-se heroicos
e à santa pobreza dão um ar de grandeza.
Tende infinita
piedade dos vendedores de passarinhos
Que em suas alminhas
claras deixam a lágrima e a incompreensão
E tende piedade
também, menor embora, dos vendedores de balcão
Que amam as freguesas
e saem de noite, quem sabe aonde vão...
Tende piedade dos
barbeiros em geral, e dos cabeleireiros
Que se efeminam por
profissão mas que são humildes nas suas carícias
Mas tende mais
piedade ainda dos que cortam o cabelo:
Que espera, que
angústia, que indigno, meu Deus!
Tende piedade dos
sapateiros e caixeiros de sapataria
Que lembram madalenas
arrependidas pedindo piedade pelos sapatos
Mas lembrai-vos
também dos que se calçam de novo
Nada pior que um
sapato apertado, Senhor Deus.
Tende piedade dos
homens úteis como os dentistas
Que sofrem de
utilidade e vivem para fazer sofrer
Mas tende mais
piedade dos veterinários e práticos de farmácia
Que muito eles
gostariam de ser médicos, Senhor.
Tende piedade dos
homens públicos e em particular dos políticos
Pela sua fala fácil,
olhar brilhante e segurança dos gestos de mão
Mas tende mais
piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes
Fazei, Senhor, com
que deles não saiam políticos também.
E no longo capítulo
das mulheres, Senhor, tende piedade das mulheres
Castigai minha alma,
mas tende piedade das mulheres
Enlouquecei meu
espírito, mas tende piedade das mulheres
Ulcerai minha carne,
mas tende piedade das mulheres!
Tende piedade da moça
feia que serve na vida
De casa, comida e roupa
lavada da moça bonita
Mas tende mais
piedade ainda da moça bonita
Que o homem molesta –
que o homem não presta, não presta, meu Deus!
Tende piedade das
moças pequenas das ruas transversais
Que de apoio na vida
só têm Santa Janela da Consolação
E sonham exaltadas
nos quartos humildes
Os olhos perdidos e o
seio na mão.
Tende piedade da
mulher no primeiro coito
Onde se cria a
primeira alegria da Criação
E onde se consuma a
tragédia dos anjos
E onde a morte
encontra a vida em desintegração.
Tende piedade da
mulher no instante do parto
Onde ela é como a
água explodindo em convulsão
Onde ela é como a
terra vomitando cólera
Onde ela é como a lua
parindo desilusão.
Tende piedade das
mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz
misteriosamente a virgindade
Mas tende piedade
também das mulheres casadas
Que se sacrificam e
se simplificam a troco de nada.
Tende piedade,
Senhor, das mulheres chamadas vagabundas
Que são desgraçadas e
são exploradas e são infecundas
Mas que vendem barato
muito instante de esquecimento
E em paga o homem
mata com a navalha, com o fogo, com o veneno.
Tende piedade,
Senhor, das primeiras namoradas
De corpo hermético e
coração patético
Que saem à rua
felizes mas que sempre entram desgraçadas
Que se creem vestidas
mas que em verdade vivem nuas.
Tende piedade,
Senhor, de todas as mulheres
Que ninguém mais
merece tanto amor e amizade
Que ninguém mais
deseja tanta poesia e sinceridade
Que ninguém mais
precisa tanto de alegria e serenidade.
Tende infinita
piedade delas, Senhor, que são puras
Que são crianças e
são trágicas e são belas
Que caminham ao sopro
dos ventos e que pecam
E que têm a única
emoção da vida nelas.
Tende piedade delas,
Senhor, que uma me disse
Ter piedade de si
mesma e de sua louca mocidade
E outra, à simples
emoção do amor piedoso
Delirava e se
desfazia em gozos de amor de carne.
Tende piedade delas,
Senhor, que dentro delas
A vida fere mais
fundo e mais fecundo
E o sexo está nelas,
e o mundo está nelas
E a loucura reside
nesse mundo.
Tende piedade,
Senhor, das santas mulheres
Dos meninos velhos,
dos homens humilhados – sede enfim
Piedoso com todos,
que tudo merece piedade
E se piedade vos
sobrar, Senhor, tende piedade de mim!
Na Bolsa de Valores
(Edgar Degas: pintor
francês)
Referência:
MORAES, Vinicius. O
desespero da piedade. In: MILLIET, Sérgio (Seleção e Notas). Obras-primas da
poesia universal. 3. ed. São Paulo, SP: Livraria Martins Editora, 1957. p. 430-433.
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