Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 8 de março de 2024

Ferreira Gullar - Inimigo oculto

Este poema de Gullar fez-me lembrar do filme “Melancolia” (2011), do cineasta dinamarquês Lars von Trier (n. 1956), no qual, em uma das cenas, a Terra colide com um fictício planeta (muito embora o evento possa ser interpretado em seu sentido metafórico, como se representasse, v.g., o desmoronamento da vida pessoal dos protagonistas da película).

 

O poeta transcreve certa passagem de um pensamento do francês Blaise Pascal (1623-1662), sobre o “eterno silêncio” a atravessar o cosmos, essa imensidão inapreensível cuja ordem de grandeza costuma-se avaliar em anos-luz, tamanha a sua expressividade.

 

Imersos em tão desmesurada amplitude, paira a dúvida sobre o momento em que poderíamos ser atingidos por um asteroide qualquer – esse “inimigo oculto” com potencial para dar termo à experiência humana sobre a Terra –, se logo mais ou se daqui a bilhões de anos (isto se não for a própria humanidade a sucumbir, em razão de seu agir insano!).

 

J.A.R. – H.C.

 

Ferreira Gullar

(1930-2016)

 

Inimigo oculto

 

dizem que

    em algum ponto do cosmos

 

(le silence éternel de ces espaces infinis m’effraie)

 

um pedaço negro de rocha

– do tamanho de uma cidade –

voa em nossa direção

 

perdido em meio a muitos milhares de asteroides

impelido pelas curvaturas do

espaço-tempo

extraviado entre órbitas

e campos magnéticos

  voa

em nossa direção

 

e quaisquer que sejam os desvios

e extravios

de seu curso

deles resultará

matematicamente

a inevitável colisão

 

não se sabe se quarta-feira próxima

ou no ano quatro bilhões e cinquenta e dois

da era cristã

 

Asteroide atinge a Terra

(Corey Ford: artista norte-americana)

 

Referência:

 

GULLAR, Ferreira. Inimigo oculto. In: FERREIRA DA SILVA, Dora et al. Boa companhia: poesia. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2003. p. 68.

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