Numa atmosfera de
sonho, o falante descreve o que se passa numa sexta-feira santa como hoje, tudo
a evocar a presença da morte, relembrada por um “dobre de finados” que se perde
ao largo, em meio ao alheamento daqueles a quem se dirige, agora submetidos à
nova lei do quotidiano contemporâneo secularizado.
Nos versos, assoma a sugestiva
pátina do simbolismo, com seus matizes religiosos: se as batidas do relógio na
torre já não estabelecem comunicação entre o céu e a terra, conclui o poeta que
tal se deve ao fato de que “a ária da platidude” passou a embalar “os corações
do mundo”, e uma pulsão de morte, espelhada em sua estática pressagiadora, não
permite vislumbrar senão um “espaço infindo” coberto de “cruzes”.
J.A.R. – H.C.
Alphonsus de
Guimaraens
(1870-1921)
Na Sexta-Feira Santa
o silêncio profundo
Na Sexta-Feira Santa
o silêncio profundo
Do céu me envolve
todo em mágoa funerária.
Nem o mais leve sopro
alenta os ares: a ária
Da platitude embala
os corações no mundo.
Olho para o infinito
e vejo, no fecundo
Lar dos astros,
surgir a lua imaginária:
Uma onda quieta, e
após, outra vaga mortuária
– Nuvens mortas – do
céu vêm divagar no fundo...
Pela estrada para
onde, ó sonho, me conduzes,
Vejo marchando além
silenciosos Cruzados,
E todo o espaço
infindo a cobrir-se de cruzes...
Nesse dia o relógio
anda morto na torre,
Pois cada hora que
passa é um dobre de finados,
Que se não ouve e que
se perde e que além morre.
Paisagem com
campanário de igreja
(Émile J. Grumieaux:
pintor belga)
Referência:
GUIMARAENS,
Alphonsus. Na sexta-feira santa o silêncio profundo. In: __________. Poesia completa:
em um volume. Organização de Alphonsus de Guimaraens Filho, com a colaboração
de Alexei Bueno e Afonso Henriques Neto. 1. ed. Rio de Janeiro, RJ: Nova
Aguillar, 2001. p. 401. (‘Biblioteca luso-brasileira’; Série brasileira)
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