A natureza notoriamente
alegórica deste poema de Pávlovitch revela algum ponto de contato com a cena
dos Evangelhos em que Cristo, pouco antes de sua morte, ceia com os seus
discípulos, muito embora, nos versos do autor sérvio, o cenário se modifique de
um refeitório, onde se repastam os comensais, diretamente a outro associável ao
Hades: “sob os nossos pés o céu; acima o teto baixo do túmulo”.
Sedentos todos eles, haverão
de “cruzar as águas” rumo a um “paraíso ressecado”, quando então receberão “de
volta suas antigas faces, feito remédio, das mãos do velhote”: concebe-se aqui,
suponho, a morte como uma metamorfose de retorno à autenticidade, como migração
de uma estação de postimeira fartura à outra estiolada, passando por águas extintoras
do fogo das paixões – traduzível por um hipotético período de provações –, até
que – outra presunção! – todos cheguem sãos e salvos à eterna morada.
J.A.R. – H.C.
Miodrag Pávlovitch
(1928-2014)
Последњи обед
Седамо за сто
поврће, ми, тањири,
сланик и комади хлеба.
За обедом влада ред,
свако са свог места
вири из лобање.
Кад се отворе врата
видимо дпанове неба.
Нико нас не дира,
но вести ипак стижу:
јешћемо бесплатно
у овој мензи довек
и свако ће добити натраг
сва своја лица
из руке старца, као лек.
Не морамо устати од стола
док прокишњава кров,
не морамо више ни јести,
Нити се бојати бола,
ишчезавамо просто
скрштених руку,
лепо ли је поћи у вечни дом!
Седамо за сто
на којем ничег нема
осим реда;
под нашим ногама је небо,
горе: ниска таваница гроба.
Начуљи уво –
ни кап се тајне више не чује,
жедни смо прешли преко воде,
а све је у рају суво.
A última ceia
(Jean de Boulogne
Valentin: pintor francês)
A última refeição
Estamos sentados à
mesa
as verduras, nós, os
pratos,
o saleiro e pedaços
de pão.
A ordem impera
e cada um de seu
lugar
vigia do interior da
caveira.
Quando a porta se
abre
enxergamos a palma da
mão do céu.
Ninguém nos incomoda,
mas as notícias
continuam chegando:
comeremos de graça
eternamente neste
refeitório
e cada um receberá de
volta
suas antigas faces,
feito remédio, das mãos
do velhote.
Nem precisamos
erguer-nos da mesa
enquanto há goteiras
no telhado,
nem devemos mais
comer,
ou temer a dor,
simplesmente
desaparecemos
mãos cruzadas
partindo para a
eterna morada.
Estamos sentados à
mesa
em que nada resta
além da ordem –
sob os nossos pés o
céu
acima o teto baixo do
túmulo.
Apura o ouvido –
não se ouve uma gota
sequer de segredo,
sedentos cruzamos as
águas
e o paraíso está
ressecado.
Referência:
PÁVLOVITCH, Miodrag. Последњи обед / A última refeição. Tradução de Aleksandar Jovanović. In: __________. Bosque
da maldição. Seleção, introdução e tradução de Aleksandar Jovanović. Edição
bilíngue. Brasília, DF: Editora da UnB, 2003. Em sérvio: p. 118 e 120; em português:
p. 119 e 121. (Coleção ‘Poetas do Mundo’)
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