Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

Mark O’Connor - O Princípio

Como se poderia depreender do próprio título do poema – a sugerir a ideia de início, princípio, criação –, o poema de O’Connor dispõe-se a parodiar a cena descrita no Gênesis (1:1-31; 2:1-3), na qual Deus, por meio da palavra, concebe tudo quanto há no universo, descansando no sétimo dia de toda obra que então realizara.

 

Na perspectiva do poeta australiano, Deus, em determinado momento da contagem dos tempos, cansou-se de criaturas muito simples – como os coelhos e os coiotes, tantas vezes disseminados pelo seu assistente Rafael –, o que lhe excitou a imaginação para organismos de constituição mais complexa – plânctons e zooplânctons, galhas-brancas-de-recife, peixes-corais rostrados, além de aves marinhas, focas, tartarugas, conchas cônicas, pinguins etc. –, tudo em tecnicolor, a reproduzir experiências de vida e morte em nosso mundo, aí inclusa a imprescindibilidade de predação, digo melhor, de cadeias alimentares na natureza, para lhe estabelecer e preservar o equilíbrio.

 

E fazendo do Éden o seu próprio céu, foi visto o Criador pelos anfitriões, envergando trajes de mergulhador profissional, logo divisado como um tubarão-lixa cinzento, nadando lentamente por sobre os corais que criara, e todos (e não apenas Deus, como no Gênesis) viram no que se transformou o horto primordial, concluindo que tudo “havia ficado muito bom”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Mark O’Connor

(n. 1945)

 

The Beginning

 

God himself

having that day planted a garden

walked through it at evening and knew

that Eden was not nearly complex enough.

And he said:

“Let species swarm like solutes in a colloid.

Let there be ten thousand species of plankton

and to eat them a thousand zooplankton.

Let there be ten phyla of siphoning animals,

one phylum of finned vertebrates, from

white-tipped reef shark to long-beaked coralfish,

and to each his proper niche,

and – no Raphael, I’m not quite finished yet –

you can add seals and sea-turtles & cone-shells & penguins

(if they care) and all the good seabirds your team can devise –

oh yes, and I nearly forgot it, I want a special place

for the crabs! And now for parasites to keep

the whole system in balance, let…

 

“…In conclusion, I want,” he said

“ten thousand mixed chains of predation –

none of your simple rabbit and coyote stuff!

This ocean shall have many mouths, many palates,

many means of ingestion. I want

say, a hundred ways of death, three thousand of regeneration –

all in technicolor naturally. And oh yes, I nearly forgot,

we can use Eden again for the small coral cay in the center.

 

“So now Raphael, if you please,

just draw out and marshall these species,

and we’ll plant them all out in a twelve-hectare patch.”

For five and a half days God labored

and on the seventh he donned mask and snorkel

and a pair of bright yellow flippers.

And, later, the host all peered wistfully down

through the high safety fence around Heaven

and saw God with his favorites finning slowly over the coral

in the eternal shape of a grey nurse shark,

and they saw that it was very good indeed.

 

A criação do céu, da terra e da água

(Willem van Herp (I): pintor flamengo)

 

O Princípio

 

O próprio Deus,

tendo plantado um jardim naquele dia,

percorreu-o ao anoitecer e reconheceu

que o Éden não era suficientemente complexo.

E disse:

“Que as espécies se aglomerem como solutos num coloide.

Que haja dez mil espécies de plâncton

e outras mil de zooplâncton para comê-las.

Que haja dez filos de animais sifonados,

um filo de vertebrados com barbatanas, desde o

galha-branca-de-recife até o peixe-coral rostrado,

e a cada um o seu nicho próprio,

e – não Rafael, ainda não terminei –

podes acrescer focas, tartarugas marinhas, conchas cônicas

e pinguins

(se eles fizerem caso) e todas as boas aves marinhas que

a tua equipe é capaz de conceber –

oh sim, e quase me esqueci, quero um lugar especial

para os caranguejos! E agora, para que os parasitas mantenham

todo o sistema em equilíbrio, deixa-me...

 

“...concluir, quero”, disse ele,

“dez mil cadeias mistas de predação –

nada das tuas coisas triviais como coelhos e coiotes!

Este oceano há de ter muitas bocas, muitos paladares,

muitos meios de ingestão. Quero

dizer, cem formas de morte, três mil de regeneração –

tudo em tecnicolor, naturalmente. E oh sim, quase esqueci,

podemos usar o Éden de novo para o pequeno recife de coral

no centro.

 

“Então agora, Rafael, por favor,

faz o levantamento dessas espécies e as classifica,

para então as assentarmos numa área de doze hectares.”

Por cinco dias e meio Deus trabalhou

e, no sétimo, pôs-se uma máscara, um esnórquel

e um par de nadadeiras amarelas brilhantes.

E, mais tarde, todos os anfitriões espiaram sofregamente

através da alta cerca de segurança ao redor do Céu

e viram Deus com os seus favoritos, nadando lentamente por

sobre o coral,

na eterna forma de um tubarão-lixa cinzento,

e viram que isso era realmente muito bom.

 

Referência:

 

O’CONNOR, Mark. The beginning. In: LEHMANN, Geoffrey; GRAY, Robert (Eds.). Australian poetry since 1788. Sydney, AU: University of New South Wales Press (UNSW Press), 2011. p. 748-749.

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