Como se poderia
depreender do próprio título do poema – a sugerir a ideia de início, princípio,
criação –, o poema de O’Connor dispõe-se a parodiar a cena descrita no Gênesis
(1:1-31; 2:1-3), na qual Deus, por meio da palavra, concebe tudo quanto há no
universo, descansando no sétimo dia de toda obra que então realizara.
Na perspectiva do
poeta australiano, Deus, em determinado momento da contagem dos tempos,
cansou-se de criaturas muito simples – como os coelhos e os coiotes, tantas
vezes disseminados pelo seu assistente Rafael –, o que lhe excitou a imaginação
para organismos de constituição mais complexa – plânctons e zooplânctons, galhas-brancas-de-recife,
peixes-corais rostrados, além de aves marinhas, focas, tartarugas, conchas
cônicas, pinguins etc. –, tudo em tecnicolor, a reproduzir experiências de vida
e morte em nosso mundo, aí inclusa a imprescindibilidade de predação, digo
melhor, de cadeias alimentares na natureza, para lhe estabelecer e preservar o
equilíbrio.
E fazendo do Éden o
seu próprio céu, foi visto o Criador pelos anfitriões, envergando trajes de
mergulhador profissional, logo divisado como um tubarão-lixa cinzento, nadando
lentamente por sobre os corais que criara, e todos (e não apenas Deus, como no
Gênesis) viram no que se transformou o horto primordial, concluindo que tudo “havia
ficado muito bom”.
J.A.R. – H.C.
Mark O’Connor
(n. 1945)
The Beginning
God himself
having that day
planted a garden
walked through it at
evening and knew
that Eden was not
nearly complex enough.
And he said:
“Let species swarm
like solutes in a colloid.
Let there be ten
thousand species of plankton
and to eat them a
thousand zooplankton.
Let there be ten
phyla of siphoning animals,
one phylum of finned
vertebrates, from
white-tipped reef
shark to long-beaked coralfish,
and to each his
proper niche,
and – no Raphael, I’m
not quite finished yet –
you can add seals and
sea-turtles & cone-shells & penguins
(if they care) and
all the good seabirds your team can devise –
oh yes, and I nearly
forgot it, I want a special place
for the crabs! And
now for parasites to keep
the whole system in
balance, let…
“…In conclusion, I
want,” he said
“ten thousand mixed
chains of predation –
none of your simple
rabbit and coyote stuff!
This ocean shall have
many mouths, many palates,
many means of
ingestion. I want
say, a hundred ways
of death, three thousand of regeneration –
all in technicolor
naturally. And oh yes, I nearly forgot,
we can use Eden again
for the small coral cay in the center.
“So now Raphael, if
you please,
just draw out and
marshall these species,
and we’ll plant them
all out in a twelve-hectare patch.”
For five and a half
days God labored
and on the seventh he
donned mask and snorkel
and a pair of bright
yellow flippers.
And, later, the host
all peered wistfully down
through the high
safety fence around Heaven
and saw God with his
favorites finning slowly over the coral
in the eternal shape
of a grey nurse shark,
and they saw that it
was very good indeed.
A criação do céu, da
terra e da água
(Willem van Herp (I):
pintor flamengo)
O Princípio
O próprio Deus,
tendo plantado um
jardim naquele dia,
percorreu-o ao
anoitecer e reconheceu
que o Éden não era
suficientemente complexo.
E disse:
“Que as espécies se aglomerem como solutos num coloide.
Que haja dez mil
espécies de plâncton
e outras mil de
zooplâncton para comê-las.
Que haja dez filos de
animais sifonados,
um filo de
vertebrados com barbatanas, desde o
galha-branca-de-recife
até o peixe-coral rostrado,
e a cada um o seu nicho
próprio,
e – não Rafael, ainda
não terminei –
podes acrescer focas,
tartarugas marinhas, conchas cônicas
e pinguins
(se eles fizerem caso) e todas as boas aves marinhas que
a tua equipe é
capaz de conceber –
oh sim, e quase me
esqueci, quero um lugar especial
para os caranguejos! E agora, para que os parasitas mantenham
todo o sistema em
equilíbrio, deixa-me...
“...concluir, quero”,
disse ele,
“dez mil cadeias
mistas de predação –
nada das tuas coisas triviais
como coelhos e coiotes!
Este oceano há de ter
muitas bocas, muitos paladares,
muitos meios de
ingestão. Quero
dizer, cem formas de
morte, três mil de regeneração –
tudo em tecnicolor, naturalmente. E oh sim, quase esqueci,
podemos usar o Éden
de novo para o pequeno recife
no centro.
“Então agora, Rafael,
por favor,
faz o levantamento
dessas espécies e as classifica,
para então as
assentarmos numa área de doze hectares.”
Por cinco dias e meio
Deus trabalhou
e, no sétimo, pôs-se
uma máscara, um esnórquel
e um par de
nadadeiras amarelas brilhantes.
E, mais tarde, todos os anfitriões espiaram sofregamente
através da alta cerca
de segurança ao redor do Céu
e viram Deus com os
seus favoritos, nadando lentamente por
sobre o coral,
na eterna forma de um
tubarão-lixa cinzento,
e viram que isso era
realmente muito bom.
Referência:
O’CONNOR, Mark. The beginning.
In: LEHMANN, Geoffrey; GRAY, Robert (Eds.). Australian poetry since 1788.
Sydney, AU: University of New South Wales Press (UNSW Press), 2011. p. 748-749.
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