Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 8 de novembro de 2022

Murilo Mendes - O Tempo

O Tempo, nestes versos de Mendes, uniforme em suas abstrações físicas, partilha-se em perspectivas relativas para engendrar realidades passadas, presentes e futuras, de modo a “armar e desarmar o braço do destino”, embora não possua mirada de terceiro grau sobre si próprio, motivo por que o relojoeiro, cercado por relógios, pergunta a outros pelas horas.

 

É que o tempo não se deixa definir no absoluto, bastante afeito que é ao seu contexto cronológico, havendo mesmo quem, nas fímbrias da ciência contemporânea, afirme que ele “não exista” – como o italiano Carlo Rovelli –, claro está, não no plano da existência humana e de sua demarcada história, senão como pura abstração no plano da inteligibilidade de átomos e galáxias.

 

Seja como for, ao apreender as muitas camadas do tempo na “decantação” do próprio tempo no mundo fenomênico, o poeta nos revela em que medida esse tempo – tanto ou bem mais que o próprio espaço – transporta os “eflúvios” do que fomos e do que não fomos, do que criamos e deixamos de criar, das transformações na natureza, e da sequência pelos éons de tudo quanto morre e acaba por sempre renascer.

 

Sua poesia [a de M.M.] me foi sempre mestra, pela plasticidade e novidade da imagem. Sobretudo foi ela quem me ensinou a dar precedência à imagem sobre a mensagem, ao plástico sobre o discursivo.

João Cabral de Melo Neto

(apud RODRIGUES; MAIA, 2001, p. 136)

 

J.A.R. – H.C.

 

Murilo Mendes

(1901-1975)

 

O Tempo

 

O tempo cria um tempo

Logo abandonado pelo tempo,

Arma e desarma o braço do destino.

 

A metade de um tempo espera num mar sem praias,

Coalhado de cadáveres de momentos ainda azuis.

O que flui do tempo entorna os pássaros,

Atravessa a pedra e levanta os monumentos

Onde se desenrola – o tempo espreitando – a ópera

do espaço.

 

Os botões da farda do tempo

São contados – não pelo tempo.

O relojoeiro cercado de relógios

Pergunta que horas são.

 

O tempo passeia a música e restaura-se.

O tempo desafia a pátina dos espíritos,

Transfere o heroísmo dos heróis obsoletos,

Divulga o que nós não fomos em tempo algum.

 

A Catedral de Rouen

(Claude Monet: pintor francês)

 

Referência:

 

MENDES, Murilo. O tempo. In: RODRIGUES, Claufe; MAIA, Alexandra (Orgs.). 100 anos de poesia: um panorama da poesia brasileira do século XX. Vol. I. Rio de Janeiro, RJ: O Verso Edições, 2001. p. 136.

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