O Tempo, nestes
versos de Mendes, uniforme em suas abstrações físicas, partilha-se em
perspectivas relativas para engendrar realidades passadas, presentes e futuras,
de modo a “armar e desarmar o braço do destino”, embora não possua mirada de
terceiro grau sobre si próprio, motivo por que o relojoeiro, cercado por
relógios, pergunta a outros pelas horas.
É que o tempo não se
deixa definir no absoluto, bastante afeito que é ao seu contexto cronológico,
havendo mesmo quem, nas fímbrias da ciência contemporânea, afirme que ele “não
exista” – como o italiano Carlo Rovelli –, claro está, não no plano da
existência humana e de sua demarcada história, senão como pura abstração no
plano da inteligibilidade de átomos e galáxias.
Seja como for, ao
apreender as muitas camadas do tempo na “decantação” do próprio tempo no mundo
fenomênico, o poeta nos revela em que medida esse tempo – tanto ou bem mais que
o próprio espaço – transporta os “eflúvios” do que fomos e do que não fomos, do
que criamos e deixamos de criar, das transformações na natureza, e da sequência
pelos éons de tudo quanto morre e acaba por sempre renascer.
Sua poesia [a de
M.M.] me foi sempre mestra, pela plasticidade e novidade da imagem. Sobretudo
foi ela quem me ensinou a dar precedência à imagem sobre a mensagem, ao
plástico sobre o discursivo.
João Cabral de Melo
Neto
(apud RODRIGUES;
MAIA, 2001, p. 136)
J.A.R. – H.C.
Murilo Mendes
(1901-1975)
O Tempo
O tempo cria um tempo
Logo abandonado pelo
tempo,
Arma e desarma o
braço do destino.
A metade de um tempo
espera num mar sem praias,
Coalhado de cadáveres
de momentos ainda azuis.
O que flui do tempo
entorna os pássaros,
Atravessa a pedra e
levanta os monumentos
Onde se desenrola – o
tempo espreitando – a ópera
do espaço.
Os botões da farda do
tempo
São contados – não
pelo tempo.
O relojoeiro cercado
de relógios
Pergunta que horas
são.
O tempo passeia a
música e restaura-se.
O tempo desafia a
pátina dos espíritos,
Transfere o heroísmo
dos heróis obsoletos,
Divulga o que nós não
fomos em tempo algum.
A Catedral de Rouen
(Claude Monet: pintor
francês)
Referência:
MENDES, Murilo. O
tempo. In: RODRIGUES, Claufe; MAIA, Alexandra (Orgs.). 100 anos de
poesia: um panorama da poesia brasileira do século XX. Vol. I. Rio de
Janeiro, RJ: O Verso Edições, 2001. p. 136.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário