Transcrevo, a seguir,
uma análise percuciente sobre o que se passa com o Brasil, nestes tempos de ódio
patrocinado por quem menos deveria espicaçá-lo – o presidente cessante Jair Bolsonaro
–, publicada originalmente no portal do jornal português “Público”,
e redigida pelo reputado sociólogo Boaventura de Sousa Santos, a se deter sobre
o assalto dessa horda insana às instituições democráticas, sobre a forma pela
qual é manipulada e esvaziada do mínimo senso de razão e de crítica – e o que nos
espera nessa luta continuada entre civilização e barbárie.
P.s.: Negritei o
oitavo parágrafo para lhe dar a ênfase necessária, servindo a todos como alerta.
Com fascistas não se prevarica nem se brinca!
J.A.R. – H.C.
Boaventura
de Sousa Santos (*)
(n. 1940)
O golpe de Estado
continuado
Com a vitória de
Lula, a democracia brasileira sobreviveu a esta nova fase do golpe de Estado
continuado. E agora?
Neste domingo
tornou-se evidente que está em curso um golpe de Estado no Brasil. É um golpe
de tipo novo, cujo curso poderá não ser substancialmente afetado pelo resultado
das eleições, ainda que a vitória de Lula da Silva certamente afetará o seu
ritmo.
É um golpe que
começou a ser posto em movimento em 2014 com a contestação dos resultados das
eleições presidenciais ganhas pela presidente Dilma Rousseff; prosseguiu com o impeachment
da presidente Dilma Rousseff em 2016; com a prisão ilegal do ex-presidente
Lula da Silva em 2018 de modo a impedi-lo de concorrer às eleições que foram
ganhas pelo presidente Jair Bolsonaro, beneficiário principal do golpe de
Estado na sua fase atual.
Com a eleição de Jair
Bolsonaro encerrou-se a primeira fase do golpe e iniciou-se uma segunda. Tal
como Adolf Hitler em 1932, Jair Bolsonaro tornou claro desde o primeiro momento
que se servira da democracia exclusivamente para chegar ao poder e que, uma vez
atingido este objetivo, exerceria o poder com o exclusivo objetivo de a destruir.
Nesta segunda fase, o golpe assumiu a forma de esvaziamento lento da
institucionalidade e da cultura política democráticas, cujos principais
componentes foram os seguintes.
No domínio da
institucionalidade: exploração de todas as debilidades do sistema político
brasileiro, nomeadamente do poder legislativo, aprofundando a mercantilização
da política, a compra e venda de votos dos representantes do povo no período
entre eleições e a compra e venda de votos de eleitores durante os períodos
eleitorais; a cumplicidade do sistema judiciário conservador incapaz de
imaginar a igualdade dos cidadãos perante a lei e habituado a conviver tanto
com o primado do direito como com o primado da ilegalidade, dependendo dos
interesses em causa; a captura das Forças Armadas através da distribuição
massiva de cargos ministeriais e administrativos.
No domínio da cultura
política democrática: a apologia da ditadura e dos seus métodos repressivos,
incluindo a tortura; utilização massiva das redes sociais para divulgar notícias
falsas e promover a cultura do ódio e uma ideologia de bem-estar esvaziada de
outro conteúdo que não o do mal-estar ou sofrimento infligido ao “outro”
construído como inimigo; a capilarização no âmago do tecido social do
imperialismo religioso conservador dos EUA (evangelismo neopentecostal) em
vigor desde 1969 como preferencial política contrainsurgente.
Esta fase concluiu-se
no final do primeiro turno das eleições presidenciais em 2 de outubro passado.
A partir daí, entrou numa fase nova assente no ataque frontal ao núcleo duro da
democracia liberal, o processo eleitoral e as instituições encarregadas de
garantir o seu decurso normal. Esta fase é qualitativamente nova em razão de
dois fatores.
Em primeiro lugar,
tornou-se mais clara a internacionalização do ataque à democracia brasileira
por via de organizações de extrema direita globais originárias e financiadas
pela plutocracia norte-americana. O Brasil transformou-se no laboratório da
extrema direita global; aí se testa a vitalidade do projeto fascista global em
que o neoliberalismo joga um novo (último?) fôlego.
O objetivo principal
é a eleição de Donald Trump em 2024. Informações fidedignas dão-nos conta de
que as empresas de desinformação e de manipulação eleitoral ligadas ao notório
fascista Steve Bannon estiveram instaladas em dois andares de uma das ruas
principais de São Paulo donde dirigiram as operações.
Nesta fase eleitoral,
as duas estratégias principais foram as seguintes. A primeira foi a intimidação
para impedir o “voto errado” e os benefícios em troco do “voto certo” oferecido
pelo baixo empresariado e por políticos locais. A segunda, há muito utilizada
pelas forças conservadoras nos EUA, sob o nome de vote suppression, foi
a supressão do voto. Tratou-se de um conjunto de medidas excecionais, sempre
sob o verniz da normalidade legal, destinadas a impedir os grupos sociais mais
inclinados a votar no candidato oposto aos golpistas de exercer o seu direito
de voto: bloqueios de estradas, excesso de zelo na fiscalização de veículos que
transportam potenciais votantes, intimidação de modo a provocar a desistência,
suspensão de transportes gratuitos decretados pela lei eleitoral para promover
o exercício do direito de voto aos mais pobres.
E agora, Brasil? A
democracia brasileira sobreviveu a esta nova fase do golpe de Estado
continuado. Para isso contribuiu o notável e destemido envolvimento dos
democratas brasileiros que viram no seu voto a prova de uma vida minimamente
digna, a afirmação da sua autoestima civilizatória, o princípio ativo da
energia democrática para os tempos difíceis que se avizinham. Contribuiu também
a firmeza das instituições da justiça eleitoral, no meio de pressões, de
desautorizações e de intimidações de todo o tipo. Mas seria estultícia
irresponsável pensar que o processo golpista terminou. Não terminou e vai
entrar numa nova fase porque as condições e as forças nacionais e
internacionais que o reclamam desde 2014 continuam vigentes e só se
fortaleceram nestes anos mais recentes.
O golpe de Estado
continuado vai entrar numa nova fase. De imediato, será provavelmente a
contestação dos resultados eleitorais para compensar o fracasso dos golpistas
em não terem conseguido os resultados que pretendiam com as múltiplas fraudes
que praticaram. Depois, o golpe assumirá outras formas, ora mais subterrâneas
com a utilização do crime organizado para intimidar as forças democráticas, ora
mais institucionais com a mobilização desviante do poder legislativo para criar
uma situação de permanente ingovernabilidade, nomeadamente com a ameaça de
impeachment do governo eleito e dos quadros superiores do sistema judicial.
Embora o objetivo de
médio prazo dos golpistas seja impedir que o Presidente Lula da Silva termine o
seu mandato, o processo do golpe continuará e só será verdadeiramente
neutralizado quando os democratas brasileiros se derem conta de que a
vulnerabilidade da democracia é em boa medida autoinfligida, pela arrogância em
pretender ser a única condição para a legitimidade do poder em vez de assumir
que a sua legitimidade estará sempre à beira do colapso numa sociedade
socioeconómica, histórica, racial e sexualmente muito injusta.
(*) Boaventura de
Sousa Santos é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade
de Coimbra. Autor, entre outras obras, de “O fim do império cognitivo”,
publicado pela Editora Autêntica.
❁
Boaventura faz uma crítica , mas não apresenta solução. Afinal nesse último parágrafo ficou confuso.
ResponderExcluirPrezada Speglich,
ExcluirComo você bem o observa, a análise de Boaventura não tem um conteúdo dominantemente normativo, prescritivo, senão sobranceiramente descritivo com o que se passa com a sociedade brasileira vis-à-vis a sua representação política.
Mas o que poderia ele dizer sobre, se nela constata o óbvio: as desigualdades injustas de ordem “socioeconómica, histórica, racial e sexual”?! Como erodir, em quatro anos, esse componente latente, herdado de um passado escravocrata?!
E pior: agora exposto, a quem quer que se proponha a constatá-lo – basta navegar pelas “redes sociais” –, o processo de fascistização das grandes massas – bestializadas, como num transe de sandices –, que logo ali promoverão o previsível esgarçamento do tecido social.
Isto não é uma brincadeira: o que está por trás é o uso indiscriminado do “Big Data”, do qual as pessoas não se dão conta, sendo facilmente manipuladas, como numa distopia de Orwell ou nos métodos condenáveis dos nazistas, passando a fazer parte dessas hordas que, presentemente, estão a atravancar as estradas do país ou, em frente a quartéis, apelam aos militares por uma recidiva do golpe de 64, agora muito mais insensato.
Se me permite sugerir algumas leituras de maior consistência, para se ter plena ciência do precitado nível de manipulação a que foi exposta, no passado recente, a sociedade brasileira (idem, a norte-americana, a italiana, a inglesa etc.), menciono as seguintes obras:
1. “Os Engenheiros do Caos”, do ítalo-americano Giuliano da Empoli; e
2. “Como as Democracias Morrem”, dos americanos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt.
Como já o disse anteriormente: estamos no cerne de uma luta entre civilização e barbárie, entre fascismo e democracia! Resistir é o contributo possível dos que se mantêm com a mente saudável.
Cordialmente,
João A. Rodrigues