Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sexta-feira, 11 de novembro de 2022

Geraldo Reis - Poema no Espelho

Neste que é o último poema da seção “III – Primavera que antecipas”, da obra em referência (“Durando entre Vindimas”, 1990), o falante dirige-se a uma figura feminina, interlocutora presente em todos os 6 (seis) poemas da precitada seção, nomeadamente “Dalila”, delicada e gentil se a sua índole, não exatamente pormenorizada, fizer jus ao referido nome.

 

A voz lírica detalha para Dalila – a presença que antecipa formalmente a primavera –, as “imagens” que, a um espelho, refletem-se como evidências de manifestação da poesia, sempre a poesia a difundir-se pelos campos ou pelas cidades, no alento ou no amparo, mas tanto mais onde o gravame dos dias nos serve como prova de que a vida é feita de sentidos e de urgências, como bem o assinala o primeiro aforismo de Hipócrates: “Ars longa, vita brevis”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Geraldo Reis

(n. 1949)

 

Poema no Espelho

 

Há poesia nos dias iguais, Dalila,

E nos dias diferentes há poesia.

 

Há poesia nos milharais dançando ao sol sob a

música dos ventos.

E no suor agrícola dos calos que são os únicos

painéis dos pobres.

 

Há poesia no milho e no cigarro de palha do

semeador colhendo ventos

E no milagre da semente agradecida sendo pão.

 

No rio de repente poluído, o poema é a asfixia

dos peixes sob a inútil contemplação das pedras.

 

E na multiplicação das escamas há poesia.

 

Há poesia no gesto sem nenhuma solenidade,

e até displicente do carrasco abreviando a vida.

 

Na carne silenciosa dos animais sacrificados

a pedradas e consumidos agora nos banquetes.

 

Há poesia na interminável fila dos metrôs que estarão

levando a todos para o sem destino.

 

Há poesia nos relógios quebrados que ninguém

mais possui.

 

Nos objetos de uso pessoal como escova de dente,

sapato velho e nuns óculos que foram um dia

o bem de certos olhos.

 

Há poesia nos corredores mudos dos manicômios

Por onde andam mil pares de inexistentes pés.

 

E nos porões dos navios atraídos para o fundo

do oceano em alto mar.

 

E no riso inexplicável dos condenados à morte

de olhos vendados saudando o crepúsculo.

 

E na cabeça do inesperado exposta em praça pública

assustando e convidando ao escárnio.

 

E na musculatura dos estivadores cegos.

 

Sempre a poesia.

 

Tudo é poesia,

E nem a carga é mais leve.

 

Sombrios chapéus, homens

Peixes, afinação de pratos

E os muros e a cicatriz dos passos interrompidos.

 

Os teus afogados no Mississipi

Os gafanhotos, os teus pobres de Manhattan.

 

Sempre a poesia, Dalila.

Tudo é poesia

E nem a carga é mais leve.

 

E em tudo os brabos ventos

Os enforcados quintais

A incessante paisagem

Desde a primavera

Que antecipas.

 

Dalí visto por trás pintando Gala de costas

eternizada por seis córneas virtuais

provisoriamente refletidas em

seis espelhos reais

(Salvador Dalí: pintor espanhol)

 

Referência:

 

REIS, Geraldo. Poema no espelho. In: __________. Durando entre vindimas. Belo Horizonte, MG: UFMG / Imprensa Universitária, 1990. p. 53-54.

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