Neste que é o último
poema da seção “III – Primavera que antecipas”, da obra em referência (“Durando
entre Vindimas”, 1990), o falante dirige-se a uma figura feminina, interlocutora
presente em todos os 6 (seis) poemas da precitada seção, nomeadamente “Dalila”,
delicada e gentil se a sua índole, não exatamente pormenorizada, fizer jus ao referido
nome.
A voz lírica detalha para
Dalila – a presença que antecipa formalmente a primavera –, as “imagens” que, a
um espelho, refletem-se como evidências de manifestação da poesia, sempre a
poesia a difundir-se pelos campos ou pelas cidades, no alento ou no amparo, mas
tanto mais onde o gravame dos dias nos serve como prova de que a vida é feita
de sentidos e de urgências, como bem o assinala o primeiro aforismo de
Hipócrates: “Ars longa, vita brevis”.
J.A.R. – H.C.
Geraldo Reis
(n. 1949)
Poema no Espelho
Há poesia nos dias
iguais, Dalila,
E nos dias diferentes
há poesia.
Há poesia nos
milharais dançando ao sol sob a
música dos ventos.
E no suor agrícola
dos calos que são os únicos
painéis dos pobres.
Há poesia no milho e
no cigarro de palha do
semeador colhendo
ventos
E no milagre da
semente agradecida sendo pão.
No rio de repente
poluído, o poema é a asfixia
dos peixes sob a
inútil contemplação das pedras.
E na multiplicação
das escamas há poesia.
Há poesia no gesto
sem nenhuma solenidade,
e até displicente do
carrasco abreviando a vida.
Na carne silenciosa
dos animais sacrificados
a pedradas e
consumidos agora nos banquetes.
Há poesia na
interminável fila dos metrôs que estarão
levando a todos para
o sem destino.
Há poesia nos
relógios quebrados que ninguém
mais possui.
Nos objetos de uso
pessoal como escova de dente,
sapato velho e nuns
óculos que foram um dia
o bem de certos
olhos.
Há poesia nos
corredores mudos dos manicômios
Por onde andam mil
pares de inexistentes pés.
E nos porões dos
navios atraídos para o fundo
do oceano em alto
mar.
E no riso
inexplicável dos condenados à morte
de olhos vendados
saudando o crepúsculo.
E na cabeça do
inesperado exposta em praça pública
assustando e
convidando ao escárnio.
E na musculatura dos
estivadores cegos.
Sempre a poesia.
Tudo é poesia,
E nem a carga é mais
leve.
Sombrios chapéus,
homens
Peixes, afinação de
pratos
E os muros e a
cicatriz dos passos interrompidos.
Os teus afogados no Mississipi
Os gafanhotos, os
teus pobres de Manhattan.
Sempre a poesia,
Dalila.
Tudo é poesia
E nem a carga é mais
leve.
E em tudo os brabos
ventos
Os enforcados
quintais
A incessante paisagem
Desde a primavera
Que antecipas.
Dalí visto por trás
pintando Gala de costas
eternizada por seis
córneas virtuais
provisoriamente
refletidas em
seis espelhos reais
(Salvador Dalí:
pintor espanhol)
Referência:
REIS, Geraldo. Poema
no espelho. In: __________. Durando entre vindimas. Belo Horizonte, MG:
UFMG / Imprensa Universitária, 1990. p. 53-54.
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