Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Cecília Meireles - Estirpe

Lendo este poema de Cecília e, mesmo a despeito de sabê-lo publicado em 1939, sustentaria que não deixam de ser nítidos os traços orientais alusivos a uma paisagem tipicamente indiana, seus muitos mendigos e místicos iogues, em combinação a um ‘modus vivendi’ que se declara “estoico”.

 

A poetisa empreende suas associações, evidenciando o seu desconsolo frente ao problema social que também se lhe revela em primeira mão: afinal, “mendigos adultos” são facilmente encontráveis nas ruas das grandes metrópoles destes ‘tristes trópicos’ de Pindorama, embora não tão “espiritualizados” quanto os do país asiático.

 

E nesse mundo de vastidões, de “viagens” físicas ou mentais, a julgar pelo derradeiro verso do poema, esse “povo” excluído, que aos poucos “vai se convertendo em pedra”, revela certos traços de identificação com a própria estirpe dos poetas, da qual Cecília fazia parte.

 

J.A.R. – H.C.

 

Cecília Meireles

(1901-1964)

 

Estirpe

 

Os mendigos maiores não dizem mais, nem fazem nada.

Sabem que é inútil e exaustivo. Deixam-se estar. Deixam-se estar.

Deixam-se estar ao sol e à chuva, com o mesmo ar de completa

coragem,

longe do corpo que fica em qualquer lugar.

 

Entretêm-se a estender a vida pelo pensamento.

Se alguém falar, sua voz foge como um pássaro que cai.

E é de tal modo imprevista, desnecessária e surpreendente

que, para a ouvirem bem, talvez gemessem algum ai.

 

Oh! não gemiam, não... Os mendigos maiores são todos estoicos.

Puseram sua miséria junto aos jardins do mundo feliz,

mas não querem que, do outro lado, tenham notícia

da estranha sorte

que anda por eles como um rio num país.

 

Os mendigos maiores vivem fora da vida: fizeram-se excluídos.

Abriram sonos e silêncios e espaços nus, em redor de si.

Têm seu reino vazio, de altas estreias que não cobiçam.

Seu olhar não olha mais, e sua boca não chama nem ri.

 

E seu corpo não sofre nem goza. E sua mão não toma nem pede.

E seu coração é uma coisa que, se existiu, já se esqueceu.

Ah! os mendigos maiores são um povo que se vai convertendo

em pedra.

Esse povo é que é o meu.

 

Os Retirantes

(Candido Portinari: pintor paulista)

 

Referência:

 

MEIRELES, Cecília. Estirpe. In: __________. Viagem. 1. ed. Lisboa, PT: Editorial Império, 1939. p. 162-163.

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