Lendo este poema de Cecília
e, mesmo a despeito de sabê-lo publicado em 1939, sustentaria que não deixam de
ser nítidos os traços orientais alusivos a uma paisagem tipicamente indiana,
seus muitos mendigos e místicos iogues, em combinação a um ‘modus vivendi’ que se
declara “estoico”.
A poetisa empreende
suas associações, evidenciando o seu desconsolo frente ao problema social que
também se lhe revela em primeira mão: afinal, “mendigos adultos” são
facilmente encontráveis nas ruas das grandes metrópoles destes ‘tristes
trópicos’ de Pindorama, embora não tão “espiritualizados” quanto os do país
asiático.
E nesse mundo de
vastidões, de “viagens” físicas ou mentais, a julgar pelo derradeiro verso do
poema, esse “povo” excluído, que aos poucos “vai se convertendo em pedra”,
revela certos traços de identificação com a própria estirpe dos poetas, da qual Cecília
fazia parte.
J.A.R. – H.C.
Cecília Meireles
(1901-1964)
Estirpe
Os mendigos maiores
não dizem mais, nem fazem nada.
Sabem que é inútil e
exaustivo. Deixam-se estar. Deixam-se estar.
Deixam-se estar ao
sol e à chuva, com o mesmo ar de completa
coragem,
longe do corpo que
fica em qualquer lugar.
Entretêm-se a
estender a vida pelo pensamento.
Se alguém falar, sua
voz foge como um pássaro que cai.
E é de tal modo
imprevista, desnecessária e surpreendente
que, para a ouvirem
bem, talvez gemessem algum ai.
Oh! não gemiam,
não... Os mendigos maiores são todos estoicos.
Puseram sua miséria
junto aos jardins do mundo feliz,
mas não querem que,
do outro lado, tenham notícia
da estranha sorte
que anda por eles
como um rio num país.
Os mendigos maiores
vivem fora da vida: fizeram-se excluídos.
Abriram sonos e
silêncios e espaços nus, em redor de si.
Têm seu reino vazio,
de altas estreias que não cobiçam.
Seu olhar não olha
mais, e sua boca não chama nem ri.
E seu corpo não sofre
nem goza. E sua mão não toma nem pede.
E seu coração é uma
coisa que, se existiu, já se esqueceu.
Ah! os mendigos
maiores são um povo que se vai convertendo
em pedra.
Esse povo é que é o
meu.
Os Retirantes
(Candido Portinari: pintor
paulista)
Referência:
MEIRELES, Cecília.
Estirpe. In: __________. Viagem. 1. ed. Lisboa, PT: Editorial Império, 1939.
p. 162-163.
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