O poeta tenta
destruir os seus próprios poemas junto a um rio sem nome, mas o fato é que não
o encontra, pois que os rios vêm à “existência” por meio de palavras que os tornam
conhecidos, não podendo a consciência negá-los, como se as suas águas fossem
capazes de fazer retornar ao nada palavras já vertidas, poemas já trazidos a
lume, porquanto, ainda que dilacerados, os versos continuam a produzir efeitos.
Não em vigília o poeta
encontra o pretenso rio sem nome, senão na “pequena morte” do sono, a teor da
última estrofe do poema, o que revelaria o estado pré-existente de todo o ser
quando adormecida a mente, incapaz, por conseguinte, de atribuir sentidos, por intermédio da
linguagem, aos símbolos que fluem no vasto caudal inominado dos sonhos.
J.A.R. – H.C.
Mia Couto
(n. 1955)
A condenação
Cansado da poesia,
o poeta levou os seus
poemas
para junto de um rio.
Queria rasgar os
versos
um por um,
dilacerar a palavra,
truncar a ideia,
desfibrar o coração.
Para o fim da poesia
procurou um rio que
não tivesse nome.
Teria que ser assim:
junto a um rio sem
nome.
Nele afogaria a
letra,
dissolveria a tinta,
liquefaria rima e
metáfora.
Andou, cirandou: mas
onde quer
que corresse um fio
de água
fluía junto um nome
como se toda a água
nascesse da palavra.
Deu volta ao mundo,
chegou onde não havia
mais mundo:
em nenhum lado
figurava o inominado
riachinho.
Cansado,
o poeta regressou à
sua aldeia
e reincidiu na sua
inicial angústia.
Ali, no pequeno
ribeiro de sua terra natal,
ele sentou o seu
desespero
e decepou os
cadernos,
desmembrou a escrita
e afogou papéis
até que deixaram de
respirar.
Chegou-se um peixe
e, de um golpe, comeu
um verso.
No seguinte instante,
lhe cresceram asas
e o peixe soltou um
voo de garça
para ganhar os vastos
céus.
Dos papéis
que restavam em suas
mãos
emergiu um braço de
mulher
que, em dissolvente
carícia,
por sonhos o fez
viajar.
Nessa noite,
de regresso a si
mesmo,
o poeta
escreveu derradeiros
versos
para matar de vez a
poesia.
Acedeu, por fim,
à pequena morte do
sono
desconhecendo
que, mesmo
adormecido,
dentro de si
seguia fluindo
o único rio sem nome.
Em: “Divindades”
(2007)
O velho e o rio
(Octavio Ocampo:
artista mexicano)
Referência:
COUTO, Mia. A
condenação. In: __________. Poemas escolhidos. Seleção do autor.
Apresentação de José Castello. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras,
2016. p. 81-83.
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