Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

terça-feira, 16 de agosto de 2022

Mia Couto - A condenação

O poeta tenta destruir os seus próprios poemas junto a um rio sem nome, mas o fato é que não o encontra, pois que os rios vêm à “existência” por meio de palavras que os tornam conhecidos, não podendo a consciência negá-los, como se as suas águas fossem capazes de fazer retornar ao nada palavras já vertidas, poemas já trazidos a lume, porquanto, ainda que dilacerados, os versos continuam a produzir efeitos.

 

Não em vigília o poeta encontra o pretenso rio sem nome, senão na “pequena morte” do sono, a teor da última estrofe do poema, o que revelaria o estado pré-existente de todo o ser quando adormecida a mente, incapaz, por conseguinte, de atribuir sentidos, por intermédio da linguagem, aos símbolos que fluem no vasto caudal inominado dos sonhos.

 

J.A.R. – H.C.

 

Mia Couto

(n. 1955)

 

A condenação

 

Cansado da poesia,

o poeta levou os seus poemas

para junto de um rio.

 

Queria rasgar os versos

um por um,

dilacerar a palavra,

truncar a ideia,

desfibrar o coração.

 

Para o fim da poesia

procurou um rio que não tivesse nome.

Teria que ser assim:

junto a um rio sem nome.

 

Nele afogaria a letra,

dissolveria a tinta,

liquefaria rima e metáfora.

 

Andou, cirandou: mas onde quer

que corresse um fio de água

fluía junto um nome

como se toda a água nascesse da palavra.

 

Deu volta ao mundo,

chegou onde não havia mais mundo:

em nenhum lado

figurava o inominado riachinho.

 

Cansado,

o poeta regressou à sua aldeia

e reincidiu na sua inicial angústia.

 

Ali, no pequeno ribeiro de sua terra natal,

ele sentou o seu desespero

e decepou os cadernos,

desmembrou a escrita

e afogou papéis

até que deixaram de respirar.

 

Chegou-se um peixe

e, de um golpe, comeu um verso.

No seguinte instante,

lhe cresceram asas

e o peixe soltou um voo de garça

para ganhar os vastos céus.

 

Dos papéis

que restavam em suas mãos

emergiu um braço de mulher

que, em dissolvente carícia,

por sonhos o fez viajar.

 

Nessa noite,

de regresso a si mesmo,

o poeta

escreveu derradeiros versos

para matar de vez a poesia.

 

Acedeu, por fim,

à pequena morte do sono

desconhecendo

que, mesmo adormecido,

dentro de si

seguia fluindo

o único rio sem nome.

 

Em: “Divindades” (2007)

 

O velho e o rio

(Octavio Ocampo: artista mexicano)

 

Referência:

 

COUTO, Mia. A condenação. In: __________. Poemas escolhidos. Seleção do autor. Apresentação de José Castello. 1. ed. São Paulo, SP: Companhia das Letras, 2016. p. 81-83.

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