A poetisa portuguesa
de origem angolana, parecendo prever o que a vida haveria de lhe reservar – a
morte prematura –, redige o seu testamento em forma de poema, legando os seus
bens, quais sejam, brincos, vestido de noiva, livros e poemas, respectivamente,
à mais jovem prostituta do bairro, a uma rapariga virgem, ao amigo desprovido
de fé, aos humildes homens desletrados e ao seu companheiro.
A falante sugere
ainda ao parceiro que, quando vier a lhe assaltar a memória depois de morta,
ofereça às crianças os poemas que escrevera, poemas de “dor sincera e
desordenada”, “de esperança desesperada, mas firme”, dir-se-ia com outras
palavras, a vida como ela é: caminho de ventura para uns, vereda de atribulações
para outros – como a própria poetisa.
J.A.R. – H.C.
Alda Lara
(1930-1962)
Testamento
À prostituta mais
nova
do bairro mais velho
e escuro,
deixo os meus
brincos, lavrados
em cristal, límpido e
puro...
E àquela virgem
esquecida
rapariga sem ternura,
sonhando algures uma
lenda,
deixo o meu vestido
branco,
o meu vestido de
noiva,
todo tecido de
renda...
Este meu rosário
antigo
ofereço-o àquele
amigo
que não acredita em
Deus...
E os livros, rosários
meus
das contas de outro
sofrer,
são para os homens
humildes,
que nunca souberam
ler.
Quanto aos meus
poemas loucos,
esses, que são de dor
sincera e
desordenada...
esses, que são de
esperança,
desesperada mas
firme,
deixo-os a ti, meu
amor...
Para que, na paz da
hora,
em que a minha alma
venha
beijar de longe os
teus olhos,
vás por essa noite
fora...
com passos feitos de
lua,
oferecê-los às
crianças
que encontrares em
cada rua...
Referência:
LARA, Alda.
Testamento. In: DÁSKALOS, Maria Alexandre; APA, Livia; BARBEITOS, Arlindo
(Eds.). Poesia africana de língua portuguesa: antologia. Rio de Janeiro,
RJ: Lacerda Editores, 2003. p. 67-68.
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