Há certos poemas de
Drummond que abalam o leitor pela supremacia de sua mensagem, e este é um
deles: o anelo pelo que de melhor o ser humano é capaz de sonhar, contra todas
as formas de perversão, impostura e inclemência, as quais, deveras, acabam por
prevalecer em sociedade, deixando-o – a ele e a nós todos – com um sabor de
frustação entre os lábios.
Penso que já tive
oportunidade de o dizer aqui, em algum momento, que este poema foi adaptado
livremente pelo cantor e compositor Martinho da Vila, como um samba-enredo para
o carnaval da Unidos de Vila Isabel, em 1980, bem ao momento de uma ditadura
militar que já exibia sinais de cansaço, agônica e estertorada, mas que nos mantinha
ainda de “bicos calados”, por imposição da censura.
J.A.R. – H.C.
Carlos Drummond de
Andrade
(1902-1987)
Sonho de um Sonho
Sonhei que estava
sonhando
e que no meu sonho
havia
um outro sonho
esculpido.
Os três sonhos
sobrepostos
dir-se-iam apenas
elos
de uma infindável
cadeia
de mitos organizados
em derredor de um
pobre eu.
Eu que, mal de mim!
sonhava.
Sonhava que no meu
sonho
retinha uma zona
lúcida
para concretar o
fluido
como abstrair o
maciço.
Sonhava que estava
alerta,
e mais do que alerta,
lúdico,
e receptivo, e
magnético,
e em torno a mim se
dispunham
possibilidades
claras,
e, plástico, o ouro
do tempo
vinha cingir-me e
dourar-me
para todo o sempre,
para
um sempre que
ambicionava
mas de todo o ser
temia...
Ai de mim! que mal
sonhava.
Sonhei que os entes
cativos
dessa livre
disciplina
plenamente floresciam
permutando no
universo
uma dileta substância
e um desejo
apaziguado
de ser um ser com
milhares,
pois o centro era eu
de tudo,
como era cada um dos
raios
desfechados para
longe,
alcançando além da
terra
ignota região lunar,
na perturbadora rota
que antigos não
palmilharam
mas ficou traçada em
branco
nos mais velhos
portulanos
e no pó dos
marinheiros
afogados em mar alto.
Sonhei que meu sonho
vinha
como a realidade
mesma.
Sonhei que o sonho se
forma
não do que
desejaríamos
ou de quanto
silenciamos
em meio a ervas
crescidas,
mas do que vigia e
fulge
em cada ardente
palavra
proferida sem
malícia,
aberta como uma flor
se entreabre:
radiosamente.
Sonhei que o sonho
existia
não dentro, fora de
nós,
e era tocá-lo e
colhê-lo,
e sem demora sorvê-lo,
gastá-lo sem vão
receio
de que um dia se
gastara.
Sonhei certo espelho
límpido
com a propriedade
mágica
de refletir o melhor,
sem azedume ou frieza
por tudo que fosse
obscuro,
mas antes o
iluminando,
mansamente
convertendo
em fonte mesma de
luz.
Obscuridade! Cansaço!
Oclusão de formas
meigas!
Ó terra sobre
diamantes!
Já vos libertais,
sementes,
germinando à superfície
deste solo resgatado!
Sonhava, ai de mim,
sonhando
que não sonhara...
Mas via
na treva em frente a
meu sonho,
nas paredes
degradadas,
na fumaça, na
impostura,
no riso mau, na
inclemência,
na fúria contra os
tranquilos,
na estreita clausura física,
no desamor à verdade,
na ausência de todo o
amor,
eu via, ai de mim,
sentia
que o sonho era
sonho, e falso.
O sonho do cavaleiro
(Antonio de Pereda:
pintor espanhol)
Referência:
ANDRADE, Carlos
Drummond de. In: __________. Claro enigma. Livro vira-vira 2. Rio de
Janeiro, RJ: BestBolso, 2010. p. 28-30. (Seleção Saraiva vira-vira: 2 livros em
1; ‘A rosa do povo’ & ‘Claro enigma’)
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