Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

quarta-feira, 20 de julho de 2022

Domingos Carvalho da Silva - Hino ao Poeta

Metáforas e metáforas sobre a figura do poeta – alusões bíblicas, referentes egípcios e gregos, itinerários delimitados por jardins e pomares: eis a elocução de um poeta, esse corifeu a labutar sobre as raízes da linguagem – terra de sua infância –, de onde faz brotar vaticínios que apontam para insuspeitadas veredas.

 

A bem dizer, há um poeta que se expressa por meio de palavras e as firma numa página em branco; de outra banda, há um leitor que, para apreender todo o sentido do poema, o substrato que se esparge feito poesia, também há de ter certa verve de poeta – nem que seja aquela pouca que se costuma acompanhar, no dito popular, por um convencionado desvario.

 

J.A.R. – H.C.

 

Domingos C. da Silva

(1915-2003)

 

Hino ao Poeta

 

Nem mesmo o coro dos arcanjos

nem o alaúde das sacerdotisas

pode sobrepujar tua voz,

ó Poeta.

Nem os ventos austrais, que desbaratam

o velame dos baixéis, como arrancadas

penas de pássaro,

podem estremecer

tuas labaredas.

 

Teu canto, doce como um trigal na infância verde

das espigas,

não podem alcançá-lo

as baionetas de neve

que ferem o voo hierático da lua.

 

Ó Poeta,

és como a terra fértil dos fios

e como o arbusto fabricando rosas.

És o pomar que produz frutos em série,

forrados de veludo, como pêssegos,

blindados como nozes

ou protegidos pelo couro sólido

das romãs.

És a árvore que se apruma e reveste seu tronco

de poderoso plástico. És a roseira

farpada como um gato

com espinhos nas garras

e a terra que fornece sarapintados

e indolentes lagartos.

 

És a ilha de gelo que se divide com estrondo,

a bomba de brasa escarlata

que leva a cada casa

a morte sob as asas.

Por isso és poeta. És canto. E não tartamudeias

sílabas cortadas.

És uma voz alta, um grito humano

e manejas, como um clarim, o som que há de acordar

os mortos, na alvorada.

 

– Uma dançarina ondula no ritmo do Cântico dos Cânticos.

 

– Uma vestal toma-se estátua para ouvir

as Odes Anacreônticas.

 

– Uma princesa viaja embalsamada

retendo, nos ouvidos,

o coro do Livro dos Mortos.

 

Porque és Poeta, tua voz

se alonga, nítida como um risco do horizonte.

Rude e corrente como o estalido

do relâmpago,

angustiada como o grito do alcatraz

sobre a presa, no mar,

dura como o cristal e pura como o amianto

assim é tua voz, ó Poeta, e não se faz

apenas de palavras,

pois caminhas qual um rio a cavalgar sua foz,

um alude que desaba sobre o vale.

 

Ou como as trombetas que romperam

os muros de Jericó.

 

Em: “A Viagem de Osíris” (1963)

 

Retrato do poeta Kleist

(André A. R. Masson: artista francês)

 

Referência:

 

CARVALHO DA SILVA, Domingos. Hino ao poeta. In: __________. Múltipla escolha: seleção de poemas. Rio de Janeiro, RJ: Livraria José Olympio Editora; Brasília, DF: INL, 1980. p. 127-128.

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