Metáforas e metáforas
sobre a figura do poeta – alusões bíblicas, referentes egípcios e gregos, itinerários
delimitados por jardins e pomares: eis a elocução de um poeta, esse corifeu a
labutar sobre as raízes da linguagem – terra de sua infância –, de onde faz
brotar vaticínios que apontam para insuspeitadas veredas.
A bem dizer, há um poeta
que se expressa por meio de palavras e as firma numa página em branco; de outra
banda, há um leitor que, para apreender todo o sentido do poema, o substrato
que se esparge feito poesia, também há de ter certa verve de poeta – nem que seja
aquela pouca que se costuma acompanhar, no dito popular, por um convencionado
desvario.
J.A.R. – H.C.
Domingos C. da
Silva
(1915-2003)
Hino ao Poeta
Nem mesmo o coro dos
arcanjos
nem o alaúde das
sacerdotisas
pode sobrepujar tua
voz,
ó Poeta.
Nem os ventos
austrais, que desbaratam
o velame dos baixéis,
como arrancadas
penas de pássaro,
podem estremecer
tuas labaredas.
Teu canto, doce como
um trigal na infância verde
das espigas,
não podem alcançá-lo
as baionetas de neve
que ferem o voo hierático
da lua.
Ó Poeta,
és como a terra
fértil dos fios
e como o arbusto
fabricando rosas.
És o pomar que produz
frutos em série,
forrados de veludo,
como pêssegos,
blindados como nozes
ou protegidos pelo
couro sólido
das romãs.
És a árvore que se
apruma e reveste seu tronco
de poderoso plástico.
És a roseira
farpada como um gato
com espinhos nas
garras
e a terra que fornece
sarapintados
e indolentes
lagartos.
És a ilha de gelo que
se divide com estrondo,
a bomba de brasa
escarlata
que leva a cada casa
a morte sob as asas.
Por isso és poeta. És
canto. E não tartamudeias
sílabas cortadas.
És uma voz alta, um
grito humano
e manejas, como um
clarim, o som que há de acordar
os mortos, na
alvorada.
– Uma dançarina
ondula no ritmo do Cântico dos Cânticos.
– Uma vestal toma-se
estátua para ouvir
as Odes
Anacreônticas.
– Uma princesa viaja
embalsamada
retendo, nos ouvidos,
o coro do Livro dos
Mortos.
Porque és Poeta, tua
voz
se alonga, nítida
como um risco do horizonte.
Rude e corrente como
o estalido
do relâmpago,
angustiada como o
grito do alcatraz
sobre a presa, no
mar,
dura como o cristal e
pura como o amianto
assim é tua voz, ó
Poeta, e não se faz
apenas de palavras,
pois caminhas qual um
rio a cavalgar sua foz,
um alude que desaba sobre
o vale.
Ou como as trombetas
que romperam
os muros de Jericó.
Em: “A Viagem de
Osíris” (1963)
Retrato do poeta
Kleist
(André A. R. Masson: artista
francês)
Referência:
CARVALHO DA SILVA,
Domingos. Hino ao poeta. In: __________. Múltipla escolha: seleção de
poemas. Rio de Janeiro, RJ: Livraria José Olympio Editora; Brasília, DF: INL,
1980. p. 127-128.
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