Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

segunda-feira, 11 de julho de 2022

Manuel António Pina - Na biblioteca

Recolhido às páginas dos livros nas bibliotecas, o poema, gravado em palavras, “sílaba a sílaba”, dorme o mesmo “sono cego que dormiram as coisas antes da chegada dos deuses”; assim, sozinho, sem poder suportar essa vida reclusa, “canta” – e aqui se poderia complementar – uma espécie de convocatória à sua poesia, autêntica música d’alma.

 

“Sobre aquilo que não se pode falar, deve-se calar”, dizia o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein. Mas essa máxima tem, notoriamente, um sentido lógico, nem sempre necessário à poesia, que, mesmo sobre o silêncio poderá engendrar suas linhas, livres num voo de imaginação ou cativas de um labor de ourives em métrica, rima e ritmo – “quando já a incerteza e o medo se consomem em metros alexandrinos”.

 

J.A.R. – H.C.

 

Manuel António Pina

(1943-2012)

 

Na biblioteca

 

O que não pode ser dito

guarda um silêncio feito

de primeiras palavras

diante do poema, que chega sempre demasiado tarde,

 

quando já a incerteza

e o medo se consomem

em metros alexandrinos.

Na biblioteca, em cada livro,

 

em cada página sobre si

recolhida, às horas mortas em que

a casa se recolheu também

virada para o lado de dentro,

 

as palavras dormem talvez,

sílaba a sílaba,

o sono cego que dormiram as coisas

antes da chegada dos deuses.

 

Aí, onde não alcançam nem o poeta

nem a leitura,

o poema está só.

E, incapaz de suportar sozinho a vida, canta.

 

Na biblioteca do monastério

(Richard Linderum: pintor alemão)

 

Referência:

 

PINA, Manuel António. Na biblioteca. In: REIS-SÁ, Jorge; LAGE, Rui (Selecção, organização, introdução e notas). Poemas portugueses: antologia da poesia portuguesa do séc. XIII ao séc. XXI. Prefácio de Vasco Graça Moura. 1. ed. Porto, PT: Porto Editora, 2009. p. 1860.

Nenhum comentário:

Postar um comentário