Recolhido às páginas
dos livros nas bibliotecas, o poema, gravado em palavras, “sílaba a sílaba”,
dorme o mesmo “sono cego que dormiram as coisas antes da chegada dos deuses”;
assim, sozinho, sem poder suportar essa vida reclusa, “canta” – e aqui se
poderia complementar – uma espécie de convocatória à sua poesia, autêntica
música d’alma.
“Sobre aquilo que não
se pode falar, deve-se calar”, dizia o filósofo austríaco Ludwig Wittgenstein.
Mas essa máxima tem, notoriamente, um sentido lógico, nem sempre necessário à
poesia, que, mesmo sobre o silêncio poderá engendrar suas linhas, livres num
voo de imaginação ou cativas de um labor de ourives em métrica, rima e ritmo – “quando
já a incerteza e o medo se consomem em metros alexandrinos”.
J.A.R. – H.C.
Manuel António Pina
(1943-2012)
Na biblioteca
O que não pode ser
dito
guarda um silêncio
feito
de primeiras palavras
diante do poema, que
chega sempre demasiado tarde,
quando já a incerteza
e o medo se consomem
em metros
alexandrinos.
Na biblioteca, em
cada livro,
em cada página sobre
si
recolhida, às horas
mortas em que
a casa se recolheu
também
virada para o lado de
dentro,
as palavras dormem talvez,
sílaba a sílaba,
o sono cego que
dormiram as coisas
antes da chegada dos
deuses.
Aí, onde não alcançam
nem o poeta
nem a leitura,
o poema está só.
E, incapaz de
suportar sozinho a vida, canta.
Na biblioteca do
monastério
(Richard Linderum: pintor
alemão)
Referência:
PINA, Manuel António.
Na biblioteca. In: REIS-SÁ, Jorge; LAGE, Rui (Selecção, organização, introdução
e notas). Poemas portugueses: antologia da poesia portuguesa do séc.
XIII ao séc. XXI. Prefácio de Vasco Graça Moura. 1. ed. Porto, PT: Porto
Editora, 2009. p. 1860.
❁
Nenhum comentário:
Postar um comentário