Em versos de dicção metaliterária,
o tradutor e poeta pernambucano, a partir de um mesmo fio condutor associado à cegueira
– em Joyce (monocular, no caso), em Borges e em Homero –, bem assim ao
despertar dos outros sentidos que tal privação fomenta, cria instigantes conexões
com as suas criações artísticas.
Notam-se alusões a Ulisses
(e ao seu cão Argos) – personagem da Odisseia de Homero e título da obra máxima
de Joyce –; ao conto “Os Mortos” do autor irlandês, contido na coletânea “Dublinenses”
(1914); e, retornando a Argos, a explícita menção à narrativa “O Imortal”, inserta no tomo “O Aleph” (1949), do argentino Jorge Luis Borges.
J.A.R. – H.C.
Jorge Wanderley
(1938-1999)
Que coisa tão
literária
Falar de Ulisses
deixa as pessoas cegas.
Joyce, pelo menos, a
gente vê
num restaurante
austríaco, almoçando
com a família entre
valsas e dramas,
e tal.
Mas Homero, esse a
gente não sabe se
ele era a versão de
Borges
ou aquele busto que
poderia ser de Sócrates.
O grego, portanto,
leva a uma cegueira ainda maior
que a da estátua,
olho opaco fechado no aberto.
Falar de Joyce deixa
as pessoas Ulisses
e os cegos pelo menos
têm um olho
polifêmico e
vulnerável
que nos mira antes de
almoçarmos
para então chorarmos
nossos mortos.
Borges também deixa todo
mundo
cego e grego:
O Imortal e seu cão
Argos e tudo. São
protonautas do
táctil, do auditivo,
do sensitivo mar no
olhar enxuto?
Falar de Homero deixa
as pessoas
Joyces e Borges
deitadas no mesmo
verde do cego.
Há aquilo que veem
para dentro, é certo,
assim:
o olho opaco fechado
no aberto
chora seus mortos com
Argos e tudo
e o sensitivo mar
do olhar enxuto
assim se encerra
assim.
Evgeny Chirikov em
sua mesa de trabalho
(Ivan S. Kulikov:
pintor russo)
Referência:
WANDERLEY, Jorge. Que
coisa tão literária. In: __________. Antologia poética. Organização de
Márcia Wanderley. Prefácio de João Alexandre Barbosa. Cotia, SP: Ateliê
Editorial, 2001. p. 115-116.
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