Alpes Literários

Alpes Literários

Subtítulo

UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

sábado, 2 de julho de 2022

Edmundo de Bettencourt - Afirmação

Depois de um voo mental “fora do tempo”, mediante o qual contempla os adregos do passado, até chegar ao “bicho que já vai passando”, espera a voz lírica ultrapassar os seus “velhos pontos de partida”, à vista dos quais anela por um dia desaparecer: árvores, pedras das sendas, sóis, chuvas e caminheiros que se vinculam à memória dos dias transcorridos.

 

Quase que como um repto à lei universal da manifestação do transitório, daquilo que tem fases, o falante prende-se ao que denota multiplicidade do diverso, no domínio do espaço, enquanto empreende persecução ao efêmero, pela subentendida vontade de se afirmar e de permanecer nesse sonho de liberdade que é a vida.

 

J.A.R. – H.C.

 

Edmundo de Bettencourt

(1889-1973)

 

Afirmação

 

Sou presença para mim fora do tempo,

sem que me sinta velho ou novo

ou a caminho da morte

que me há-de matar, um dia.

 

Assim, quão perto

vejo a criança que passei

e o iludido jovem...

E vejo o adulto, homem atormentado

pelas guerras sem beleza,

até chegar ao bicho que já vou passando...

 

Ó viagens sem fim

que a vida sem limites

concede às existências!

 

Agora, numa volta,

que é ter à minha frente

cruéis verdades de antes pressentidas,

e é ultrapassar

meus velhos pontos de partida.

 

Agora, ó árvores mudas, com gestos que são gritos,

pisadas, mas duras pedras dos caminhos,

sóis brilhantes, de aquecer e calcinar,

chuvas de enregelar

e refrescar febres desesperadas,

caminheiros,

desde longe em desafio à lei negada,

agora,

mais do que nunca estou convosco

e em vós quero mais desaparecer!

 

E se até contra vós escutais minhas revoltas,

sinto bem, mais contra mim escuto as vossas.

 

Contra mim,

que só errante e inquieto ando

para merecer uma bruta pureza, tão de vós

donde na origem vim também sangrando.

E aonde liberto chegarei,

fiel à sua remota vibração,

nota bem funda, embora oculta, do meu canto,

e sinal duma simples existência

junto à vossa,

nas horas da afirmação das vossas vidas!

 

Em: “Ligação” (1936-1962)

 

O Jardim das Memórias

(Thomas E. Mostyn: pintor inglês)

 

Referência:

 

BETTENCOURT, Edmundo de. Afirmação. In: __________. Poemas: 1930-1962. Lisboa, PT: Portugália, dez. 1963. p. 173-175. (Coleção ‘Poetas de Hoje’; n. 14)

Nenhum comentário:

Postar um comentário