Depois de um voo mental
“fora do tempo”, mediante o qual contempla os adregos do passado, até chegar ao
“bicho que já vai passando”, espera a voz lírica ultrapassar os seus “velhos
pontos de partida”, à vista dos quais anela por um dia desaparecer: árvores,
pedras das sendas, sóis, chuvas e caminheiros que se vinculam à memória dos
dias transcorridos.
Quase que como um
repto à lei universal da manifestação do transitório, daquilo que tem fases, o
falante prende-se ao que denota multiplicidade do diverso, no domínio do
espaço, enquanto empreende persecução ao efêmero, pela subentendida vontade de se
afirmar e de permanecer nesse sonho de liberdade que é a vida.
J.A.R. – H.C.
Edmundo de
Bettencourt
(1889-1973)
Afirmação
Sou presença para mim
fora do tempo,
sem que me sinta
velho ou novo
ou a caminho da morte
que me há-de matar,
um dia.
Assim, quão perto
vejo a criança que
passei
e o iludido jovem...
E vejo o adulto,
homem atormentado
pelas guerras sem
beleza,
até chegar ao bicho
que já vou passando...
Ó viagens sem fim
que a vida sem limites
concede às
existências!
Agora, numa volta,
que é ter à minha
frente
cruéis verdades de
antes pressentidas,
e é ultrapassar
meus velhos pontos de
partida.
Agora, ó árvores
mudas, com gestos que são gritos,
pisadas, mas duras
pedras dos caminhos,
sóis brilhantes, de
aquecer e calcinar,
chuvas de enregelar
e refrescar febres
desesperadas,
caminheiros,
desde longe em
desafio à lei negada,
agora,
mais do que nunca
estou convosco
e em vós quero mais
desaparecer!
E se até contra vós
escutais minhas revoltas,
sinto bem, mais
contra mim escuto as vossas.
Contra mim,
que só errante e
inquieto ando
para merecer uma
bruta pureza, tão de vós
donde na origem vim
também sangrando.
E aonde liberto
chegarei,
fiel à sua remota
vibração,
nota bem funda,
embora oculta, do meu canto,
e sinal duma simples
existência
junto à vossa,
nas horas da
afirmação das vossas vidas!
Em: “Ligação”
(1936-1962)
O Jardim das Memórias
(Thomas E. Mostyn: pintor
inglês)
Referência:
BETTENCOURT, Edmundo
de. Afirmação. In: __________. Poemas: 1930-1962. Lisboa, PT:
Portugália, dez. 1963. p. 173-175. (Coleção ‘Poetas de Hoje’; n. 14)
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