Ao se pronunciar o “Ö” do
idioma sueco, semelhante a “ilha” no inglês, os lábios imitam a própria forma do
trema, sugerindo à poetisa um exercício de imaginação transcultural, pejado de
conotações infundidas por essa simples palavra, a servir de alavanca para um
mundo que se descola do domínio “espaço x tempo”, digo melhor, da realidade
física à volta, fazendo flutuar um bairro inteiro sob as imagens que se fixam à
mente, quando se pensa no país escandinavo.
Com efeito, a falante
se reporta a uma família sueca que passou a residir na “casa amarela da esquina”
– um verdadeiro “galeão encalhado em flores” –, levando-a a expandir
umbraticamente o presente e o futuro, bulidos por “ventos” ou “brisas”, em
companhia de “cardeais dispersos” – pássaros canoros de crista brilhante e
vermelha, muito comuns em terras americanas.
Poder-se-ia atribuir ao
poema algum matiz a dizer respeito ao próprio processo de integração de
imigrantes na sociedade norte-americana, pois que, longe de casa – entenda-se,
sua pátria –, tendem a manter certos traços identitários, muito afeitos a serem
interpretados como vínculos que os unem numa espécie de lar gentílico.
J.A.R. – H.C.
Rita Dove
(n. 1952)
Ö
Shape the lips to an
o, say a.
That’s island.
One word of Swedish
has changed the whole neighborhood.
When I look up, the
yellow house on the corner
is a galleon stranded
in flowers. Around it
the wind. Even the
high roar of a leaf-mulcher
could be the
horn-blast from a ship
as it skirts the
misted shoals.
We don’t need much
more to keep things going.
Families complete
themselves
and refuse to budge
from the present,
the present extends
its glass forehead to sea
(backyard breezes,
scattered cardinals)
and if, one evening,
the house on the corner
took off over the
marshland,
neither I nor my
neighbor
would be amazed.
Sometimes
a word is found so
right it trembles
at the slightest
explanation.
You start out with
one thing, end
up with another, and
nothing’s
like it used to be,
not even the future.
A carroça de feno
(John Constable:
pintor inglês)
Ö
Molde os lábios em ‘o’,
diga ‘a’.
Isso é uma ilha.
Uma palavra em sueco
alterou toda a vizinhança.
Quando olho para
cima, a casa amarela na esquina
é um galeão encalhado
em flores. Ao seu redor,
o vento. Até mesmo o
rugido alto de um triturador de folhas
poderia ser o som da
buzina de um navio
enquanto contorna baixios
enevoados.
Não precisamos de
muito mais para manter as coisas
funcionando.
As famílias se
completam
e se recusam a ceder
do presente,
o presente a estender
a sua fronte de vidro até o mar
(brisas do quintal,
cardeais dispersos)
e se, numa noite, a
casa da esquina
descolasse sobre o
pântano,
nem eu nem meu
vizinho
ficaríamos surpresos.
Às vezes,
uma palavra é julgada
tão correta que estremece
à menor explicação.
Começa-se com uma
coisa, termina-se
com outra, e nada é
como costumava ser,
nem mesmo o futuro.
Referência:
DOVE, Rita. Ö. In:
ASTLEY, Neil (Ed.). Staying alive: real poems for unreal times. 1st. ed.
New York, NY: Miramax Books, 2003. p. 448-449.
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