Tão emblemático quanto
quaisquer das obras de Beckett – a tríade “Molloy” (1951), “Malone morre” (1951)
e “O inominável” (1953), muito em particular –, este seu poema transcorre como
que por seções, cada uma a representar atitudes humanas passíveis de atribuição
ao significado de um determinado dia.
Primeiramente, certa indiferença
pelo regresso ao seio familiar, de um seu rebento que se havia “desencaminhado”,
em detrimento às emoções, sem maiores impactos, de uma partida de futebol da
Copa do Mundo; depois, o rumor abafado das manifestações de fé religiosa, ou
melhor, o “marulhar dos fiéis”; e, por fim, a resposta do artista, a
proporcionar a ascensão a que diz respeito o título do poema, em contrapartida
à inoportuna chegada da morte e a obstrução ao que se poderia ter sido.
A parte final do poema
semelha-se à ideia de ressurreição de Cristo, pois o impalpável espírito de uma
jovem morta volta à vida, liberto de todos os seus pesos e cuidados, planando
no ar sobre o esquife do narrador.
J.A.R. – H.C.
Samuel Beckett
(1906-1989)
Ascension
à travers la mince
cloison
ce jour où un enfant
prodigue à sa façon
rentra dans sa
famille
j’entends la voix
elle est émue elle
commente
la coupe du monde de
football
toujours trop jeune
en même temps par la
fenêtre ouverte
par les airs tout
court
sourdement
la houle des fidèles
son sang gicla avec
abondance
sur les draps sur les
pois de senteur sur son mec
de ses doigts
dégoûtants il ferma les paupières
sur les grands yeux
verts étonnés
elle rode légère
sur ma tombe d’air
Dans: “Poèmes” (1937-1939)
Homem sentado à
janela
(Marcel Duchamp:
artista francês)
Ascensão
através da estreita
divisória
naquele dia em que um
rebento
pródigo à sua maneira
regressou à família
escuto a sua voz
emocionada a comentar
a copa do mundo de
futebol
sempre jovem demais
ao mesmo tempo pela
janela aberta
tão somente pelos
ares
num rumor abafado
ouço o marulho
dos fiéis
seu sangue jorrou
profusamente
sobre os lençóis sobre
as ervilhas doces
sobre o seu amásio
que fechou as
pálpebras com dedos repugnantes
sobre os grandes e
atônitos olhos verdes
ela vagueia com
leveza
sobre minha tumba de
ar
Em: “Poemas”
(1937-1939)
Referência:
BECKETT, Samuel.
Ascension. In: __________. Collected poems in english and french. New
York, NY: Grove Press, 1977. p. 42.
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