Finda a leitura da obra em epígrafe, venho compartilhar com os internautas as impressões que me subsistiram à memória, em especial pela surpresa de haver-me deparado com um texto maduro de um escritor que, à altura de sua elaboração, contava apenas vinte e quatro anos.
Cabral é literato de formação e, por conseguinte, não chega a assombrar as inúmeras alusões, em “O Meu Irmão”, a passagens de célebres narrativas da ficção internacional, como “Laranja Mecânica”, de Anthony Burgess, “A Leste do Éden”, de John Steinbeck, “O Coração das Trevas”, de Joseph Conrad – somente para mencionar as que, por ora, acorrem-me à mente –, afora “À sombra das raparigas em flor”, de Marcel Proust, o segundo volume de “Em busca do tempo perdido”, romance a partir do qual detém-se o protagonista-narrador a devanear sobre um hipotético encontro amoroso com Albertine, a despeito de seu acobertado lesbianismo (vide a primeira transcrição em itálico, mais abaixo).
A propósito, em itálico aqui estão duas digressões que, no livro em comento, aparecem em letras menores que a do texto propriamente dito, como que a demarcar digressões fora de curso, explico-me melhor, pensamentos ou elucubrações do protagonista-narrador que, à margem dos fatos narrados, não são expressos verbalmente.
Contudo, o que de mais importa no enredo é a cordura com que é tratado o tema das pessoas com necessidades especiais, e os cuidados de que são merecedoras por parte de seus responsáveis. Com efeito, o protagonista-narrador, professor universitário, passa a tomar conta de seu irmão Miguel, com síndrome de Down e já na casa dos quarenta, depois que finados os pais.
São risíveis as passagens atinentes ao relacionamento entre Miguel e Luciana, uma história de amor entre um “mongoloide e uma apanhadita do cérebro”, mas que, ao fim, assume contornos meio trágicas, pois o protagonista-narrador, pondo fim à relação, resolve afastá-los fisicamente, deixando Luciana desacordada à beira de um ermo de estrada, depois de altercações entre os três intervenientes, sem que as consequências de tal ato fique suficientemente clara quer para o próprio protagonista-narrador quer para o leitor, ou melhor, se Luciana veio a óbito ou se foi resgatada por algum condutor eventualmente transitando por aquelas paragens.
No mais, fica para o internauta deslindar os muitos encadeamentos da trama, mesmo após a leitura da resenha aposta à contracapa do livro, que, por igual, transcrevo a seguir. Uma obra a conferir!
Resenha do Editor
Com a morte dos pais,
é preciso decidir com quem fica Miguel, o filho de 40 anos que nasceu com
síndrome de Down. É então que o irmão – um professor universitário divorciado e
misantropo – surpreende (e até certo ponto alivia) a família, chamando a si a
grande responsabilidade. Tem apenas mais um ano do que Miguel, e a recordação
do afecto e da cumplicidade que ambos partilharam na infância leva-o a
acreditar que a nova situação acabará por resgatá-lo da aridez em que se
transformou a sua vida e redimi-lo da culpa por tantos anos de afastamento.
Porém, a chegada de Miguel traz problemas inesperados – e o maior de todos
chama-se Luciana.
Numa casa de família,
situada numa aldeia isolada do interior de Portugal, o leitor assistirá à
rememoração da vida em comum destes dois irmãos, incluindo o estranho episódio
que ameaçou de forma dramática o seu relacionamento.
O “Meu Irmão”,
vencedor do Prémio LeYa 2014 por unanimidade, é um romance notável e de grande maturidade
literária que, tratando o tema sensível da deficiência, nunca cede ao
sentimentalismo, oferecendo-nos um retrato social objectivo e muitas vezes até
impiedoso.
J.A.R. – H.C.
Afonso Reis Cabral
(n. 1990)
Depois de entrar
segurando a minha mão, olha para mim e abre um sorriso nos olhos meia-lua,
entre constrangido e alegre. Range os dentes de felicidade ou susto ou não sei
o quê.
Senta-se no sofá levantando
o pó. A barriga enrola-se em dois altos encostados um ao outro. Os dedos simulam
um estalido quase imperceptível; repletos de calos, têm o mesmo comprimento. As
orelhas diminutas sobressaem no cabelo curto. A camisola justa ao pescoço e as
mangas reviradas. Os olhos denunciam o aspecto estrangeiro. Não se consegue
controlar, mexe-se com ansiedade.
A pesar de parecer
uma criança envergonhada de dez anos a mexer os dedos e a fazer salamaleques, é
bem o meu irmão, na casa dos quarenta, um pouco para o gordo e, claro, mongoloide.
(CABRAL, 2014, p. 13)
O [rio] Paiva
revela-se depois da última curva, e ao cimo, como uma coroa na cabeça do monte,
a aldeia do Tojal. Em suma, uma rua com casas de lado e de permeio. Ainda é
possível ver o sulco das carroças na pedra do chão. Musgo cobre a base das
portas por onde já ninguém entra. Uma ou duas tábuas atiradas para um canto.
Alguns gatos que vivem nas ruínas. Mais nada. (CABRAL, 2014, p. 13)
Albertine nas águas
era o que eu queria. Qual quarto de hotel. Ali mesmo, na zona mais remota do
rio. Albertine fora das páginas, Albertine inteira. Não teria tantos ciúmes
como o narrador, esse frustrado, nem me importaria com as inclinações especiais
dela, desde que estivesse comigo desinibida na corrente do rio. Albertine no
Paiva. Depois, já sem proveito, em vez de adormecer ao meu lado, ela que
voltasse às páginas do livro. (CABRAL, 2014, p. 71-72)
Não sei porquê, nem
se de facto é assim, mas existe um rácio entre a infelicidade dele [Miguel] e a
minha felicidade. Não falo de um rácio de progenitor, tampouco de irmão.
Chamemos-lhe só rácio. Quanto mais infeliz ele é, mais feliz me torno. Faço-me
feliz em ajuda-lo, em tirá-lo da infelicidade e devolvê-lo à condição de anjo
ferido, anjo na Terra, embora não saiba em que consiste essa condição. (CABRAL,
2014, p. 83)
Refugiava-me nos
livros. Mais do que um escape, e se a vida é feita de locais, os livros eram um
local onde eu ouvia as vozes dos outros como se fossem ditas por mim. Deste
modo, não representavam bem um refúgio, mas sim o sítio aonde voltava a casa.
Uma parcela da vida que dava para muitas outras parcelas que eu nunca poderia
conhecer, ou sequer perceber. (CABRAL, 2014, p. 119)
Eu pensava na beleza
do quotidiano. Abria outro livro e embrenhava-me nele. Ocasionalmente,
acontecia frustrar-me com o próprio livro tanto como com a porta fechada do
Miguel ou o despentear de cabelo do meu pai. Então, sim, podia actuar.
Arrancava as páginas com lentidão quase até ao fim, para doer, depois puxava
com força, para matar. Arrancava as páginas dos livros como se arrancasse as
penas a um pássaro vivo e palpitante nas minhas mãos. (CABRAL, 2014, p. 119-120)
Quando se é velho e
pai de um deficiente, aprende-se a lidar com o medo. Quando eu for ainda mais
velho, que será feito do meu filho? E quando eu morrer? E quando ele se tornar
velho e eu já não existir? Este medo será com certeza constituído por muitos
outros. E também uma parte física, quer dizer, olhar para as mãos, sabê-las
extintas e, tal como as mãos, o resto do corpo, apesar de dentro desse corpo
permanecermos iguais, sentirmo-nos novos – sermos afinal eternos.
Não sei descrever a
velhice porque a velhice não existe em abstracto. (CABRAL, 2014, p. 237)
Capa de “O Meu Irmão”
Referência:
CABRAL, Afonso Reis. O meu irmão.
Alfradige, PT: Leya, 2014.
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