Alpes Literários

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UM PASSEIO PELOS ALPES LITERÁRIOS

domingo, 5 de dezembro de 2021

Sylvia Plath - Papai

Neste que, para os analistas literários, é um dos mais controversos e antologiados poemas de Plath, a poetisa recorre a densas e pungentes alegorias para moldar certa visão da voz lírica – certamente do sexo feminino –, em busca de se libertar da figura do pai, impregnada ainda em sua memória, matando-o uma segunda e derradeira vez –, pois que, como se descreve nos versos, morto já fisicamente seu genitor há dez anos.

Revela-se o medo que a falante sentia (e sente) à presença do pai, em dado momento equiparado a um militar da Força Aérea Alemã durante a 2GM, com o seu bigode bem aparado e arianos olhos azuis, e ela a parecer-se uma mulher de ascendência judaica, sendo levada, numa locomotiva, para um campo de concentração.

Com efeito, embora a oradora não tenha, de fato, matado ninguém, sente-se como se houvesse fulminado seu pai e seu marido – um parasita que “bebeu meu sangue” por sete anos –, talvez querendo dizer com isso, que eles, simplesmente morreram para ela daqui por diante.

De mais a mais, a triste menção a uma tentativa de suicídio aos vinte anos, numa ação frustrada no intento de se reencontrar com o pai – a evocar o que, mais tarde, veio a se tornar um fato biográfico, com o suicídio da própria poetisa em Londres, Inglaterra, a 11 de fevereiro de 1963: de certo modo, uma profecia autorrealizada.

J.A.R. – H.C.

 

Sylvia Plath

(1932-1963)

 

Daddy

 

You do not do, you do not do

Any more, black shoe

In which I have lived like a foot

For thirty years, poor and white,

Barely daring to breathe or Achoo.

 

Daddy, I have had to kill you.

You died before I had time –

Marble-heavy, a bag full of God,

Ghastly statue with one gray toe

Big as a Frisco (*) seal

 

And a head in the freakish Atlantic

Where it pours bean green over blue

In the waters off the beautiful Nauset.

I used to pray to recover you.

Ach, du.

 

In the German tongue, in the Polish town

Scraped flat by the roller

Of wars, wars, wars.

But the name of the town is common.

My Polack friend

 

Says there are a dozen or two.

So I never could tell where you

put your foot, your root,

I never could talk to you.

The tongue stuck in my jaw.

 

It stuck in a barb wire snare.

Ich, ich, ich, ich,

I could hardly speak.

I thought every German was you.

And the language obscene

 

An engine, an engine,

Chuffing me off like a Jew.

A Jew to Dachau, Auschwitz, Belsen.

I began to talk like a Jew.

I think I may well be a Jew.

 

The snows of the Tyrol, the clear beer of Vienna

Are not very pure or true.

With my gypsy ancestress and my weird luck

And my Taroc pack and my Taroc pack

I may be a bit of a Jew.

 

I have always been scared of you,

With your Luftwaffe, your gobbledygoo.

And your neat mustache

And your Aryan eye, bright blue.

Panzer-man, panzer-man, O You –

 

Not God but a swastika

So black no sky could squeak through.

Every woman adores a Fascist,

The boot in the face, the brute

Brute heart of a brute like you.

 

You stand at the blackboard, daddy,

In the picture I have of you,

A cleft in your chin instead of your foot

But no less a devil for that, no not

Any less the black man who

 

Bit my pretty red heart in two.

I was ten when they buried you.

At twenty I tried to die

And get back, back, back to you.

I thought even the bones would do.

 

But they pulled me out of the sack,

And they stuck me together with glue.

And then I knew what to do.

I made a model of you,

A man in black with a Meinkampf look

 

And a love of the rack and the screw.

And I said I do, I do.

So daddy, I’m finally through.

The black telephone’s off at the root,

The voices just can’t worm through.

 

If I’ve killed one man, I’ve killed two –

The vampire who said he was you

And drank my blood for a year,

Seven years, if you want to know.

Daddy, you can lie back now.

 

There’s a stake in your fat black heart

And the villagers never liked you.

They are dancing and stamping on you.

They lways knew it was you.

Daddy, daddy, you bastard, I’m through.

 

Mamãe / Papai

(Joe Coleman: pintor norte-americano)

 

Papai

 

Você não serve, você não serve,

Não serve mais, sapato negro

Em que eu vivi como um pé

Por trinta anos, branca e pobre,

Mal me atrevendo a um espirro sequer.

 

Eu tive de matar você, papai.

Você morreu antes que eu pudesse –

Peso de mármore, saco repleto de Deus,

Estátua medonha com um dedão gris

Do tamanho de uma foca de Frisco (*)

 

E uma cabeça onde o estranho Atlântico

Derrama o verde-vagem sobre o azul

Nas águas da magnífica Nauset.

Eu rezava para recuperá-lo

Ach, du.

 

Na língua alemã, na vila polonesa

Aterradas pelo rolo-compressor

Das guerras, guerras, guerras.

Mas o nome do lugar é comum.

Diz meu amigo polaco

 

Que há uma ou duas dúzias.

Assim nunca soube onde você

Fincou seus pés, suas raízes,

Com você nunca pude falar.

A língua presa no maxilar.

 

Arapuca de arame farpado.

Ich, ich, ich, ich,

Mal conseguia dizer.

Em todo alemão vi você.

E a linguagem obscena

 

Uma locomotiva, uma locomotiva

Em vapores me leva como Judia.

Uma Judia para Dachau, Auschwtiz, Belsen.

Passei a falar como uma Judia.

Acho que bem posso ser Judia.

 

A neve do Tirol, a cerveja clara de Viena

Não são lá muito puras ou genuínas

Com minha ancestral cigana, minha estranha sina

E meu baralho de tarô, meu baralho de tarô

Eu devo ser um pouco Judia.

 

Você sempre me meteu medo,

Com sua Luftwaffe, seu papo furado.

E o seu bigode asseado

O olho ariano, bem azulado.

Homem-panzer, homem-panzer, oh Você –

 

Não Deus, mas uma suástica.

Tão negra que nem céu vara.

Toda mulher adora um Fascista,

A bota na cara, o bruto

Coração de um bruto da sua laia.

 

Você está de pé na lousa, papai,

Na imagem que levo comigo,

Em vez do pé, o queixo fendido,

Mas não menos diabo por isso, oh não

Não menos que o homem que em dois

 

Partiu meu belo e rubro coração.

Eu tinha dez anos quando o enterraram.

Aos vinte, eu tentei morrer

E voltar, voltar pra você.

Achei que mesmo os ossos serviram.

 

Mas me puxaram saco afora,

Juntaram meus pedaços com cola.

E aí eu soube o que fazer.

Eu fiz um modelo de você,

Homem de negro, Meinkampf no jeito

 

À tortura e ao torniquete afeito.

E eu disse aceito, aceito

Então, papai, finalmente acabei.

Arranquei o telefone negro da raiz,

As vozes já não rastejam até aqui.

 

Se matei um homem, matei dois –

O vampiro que me disse ser você

E sugou meu sangue por um ano afora,

Sete anos, se quiser saber

Papai pode voltar a se deitar agora.

 

Há uma estaca em seu coração negro

E os homens da vila jamais gostaram de você.

Estão espezinhando, dançando sobre você.

Eles sempre souberam que era você.

Papai, papai, seu canalha, acabei.


Nota da Tradutora:

(*) Frisco – a cidade de São Francisco, EUA.

Referência:

PLATH, Sylvia. Daddy. Tradução de Marina Della Valle. In: VALLE, Marina Della. Sylvia Plath: quatro “poemas-porrada”. Universidade de São Paulo / Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/USP). Cadernos de literatura em tradução, n. 7, 2006, p. 165-199. Em inglês: p. 169-172; em português: p. 173-176. Disponível neste endereço. Acesso em: 30 nov. 2021.

 

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